terça-feira, 23 de novembro de 2010

Por que uma teologia contextualizada?

Afonso Murad
Segundo S. Bevans, fazer teologia contextual não é algo opcional, ou que diz respeito somente ao terceiro mundo. Ao contrário, o intento de compreender a fé cristã em termos de um contexto particular se trata de um imperativo teológico. Por que a teologia tem que ser contextual hoje? Fatores externos e internos contribuem para tal prioridade.
Podem-se enumerar quatro fatores externos. Em primeiro lugar, há uma insatisfação visível com as clássicas abordagens da teologia. No continente europeu, as variadas filosofias clássicas que no passado serviram de base à teologia (sobretudo à católica), não sintonizam com o pensamento contemporâneo. São insatisfatórias para interpretar a atual complexidade da existência humana. Faz-se necessário então estabelecer nova relação da teologia com os saberes atuais, para que ela recupere sua significatividade. Questiona-se a teologia como imutável, terminada, como “theologia perennis”, em nome da relevância.
Nos outros continentes, cresce também a convicção de que é necessário rever modelos culturais e formas de pensamento que estão na base da teologia ocidental. Para o teólogo da Índia R. Panikar, por exemplo, não se aceita no seu país o princípio da contradição, que está na base da lógica ocidental. Para sua cultura, as coisas podem ser e não ser ao mesmo tempo.
Em segundo lugar, reconhece-se que a teologia clássica carregou, de forma inconsciente, a ideologia dominante centro-européia. Considerou com universal aquilo que era típico de um determinado grupo humano. Assim, legitimou preconceitos e formas de opressão. Teólogo negro, protestante e norte americano, James Cone denunciou em suas obras como a teologia tradicional ignora a experiência dos negros, não ouve seus clamores e torna-os invisíveis. Outros escritores mostraram que a clássica ênfase na salvação individual e na ética intimista afetou as culturas que compreendiam a pessoa somente em relação ao seu grupo.
Em terceiro lugar, a crescente identidade das Igrejas locais demanda verdadeiras teologias contextuais. Recordando a clássica imagem de Lima Vaz, à medida que as Igrejas locais deixam de ser “espelho”, que se contentam em refletir o que determina o poder central ou copiar as práticas de outras denominações, e passam a ser “fontes”, necessitam de teologias contextuais. Trata-se de uma verdadeira descolonização da teologia.
Por fim, o quarto fator externo apontado por Bevans consiste na ampliação do conceito de “culto” e “cultura”. Até então, vigorava a idéia que existia somente uma cultura de valor, universal e permanente. Uma pessoa culta seria aquela que assimilaria os comportamentos, a visão, a forma de se expressar, a língua e manifestações artísticas dela emanadas. Hoje se compreende a cultura como conjunto de significado e de valores que expressam um estilo de vida. Reconhece-se que há muitas culturas ao redor do mundo. Assim, uma pessoa é culta enquanto se socializa e elabora de forma reflexa e profunda os elementos de determinada cultura, levando-a ao grau mais elevado possível de valores e significados. Ora, a uma concepção exclusivista de cultura correspondia a visão também exclusivista da fé cristã e da teologia. E tal concepção ser revela parcial e anacrônica.
Fatores internos à própria fé e à teologia justificam o imperativo de contextualizar a teologia. O primeiro e decisivo diz respeito à natureza encarnada do cristianismo. Deus tanto amou o mundo que compartilhou sua vida divina, fazendo-se carne (Jo 1,14; 3,16). Não de forma geral, mas de maneira particular. O filho de Deus se encarna numa pessoa humana de determinada etnia, gênero e cultura. A lição da encarnação, de se fazer particular para poder comunicar-se e dialogar, vale como figura inspiradora para a teologia contextualizada.
O segundo fator diz respeito à dimensão sacramental-simbólica da realidade. Deus não se revelou em Jesus com idéias abstratas, pretensamente universais, mas sim na realidade concreta humana. Por extensão, as coisas ordinárias da existência humana passam a ser transparência da presença de Deus. Assim, a cultura, a experiência humana, os eventos históricos, os elementos centrais que constituem os contextos, tornam-se parte integrante do processo de acolhida à revelação de Deus em Jesus.
O terceiro fator aponta para a mudança do conceito de revelação. Não se concebe mais como verdade eterna, delimitada numa linguagem divina pretensamente inalterável e imutável, pairando fora do tempo. E sim como a auto-comunicação de Deus através de gestos e palavras na história. A um conceito mais abrangente de revelação corresponde também o da teologia, como esforço de compreender e interpretar, sempre na história em mudança, ao auto-oferta divina que gera o diálogo salvífico. Uma noção relacional e interpessoal de revelação e de fé implica a necessidade de considerar o contexto no qual homens e mulheres experimentam a Deus e acolhem sua Palavra.
Portanto, elaborar teologia hoje significa refletir sobre a fé ou pensar sobre qualquer realidade humana significativa à luz da fé, de forma contextualizada, encarnada, inculturada. A teologia se faz nas teologias! Com os pés no chão das culturas, com um horizonte abrangente!