terça-feira, 6 de novembro de 2012

Fazer teologia na América Latina e no Caribe

Jon Sobrino (El Salvador)

A teologia não é o primeiro a ser pensado. O primeiro é a realidade e, no caso da Teologia, a realidade absoluta. Com sua agudeza habitual, Dom Pedro Casaldáliga, ao se referir ao absoluto, diz que “tudo é relativo, menos Deus e a fome”. O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. Fazer teologia é, então, ajudar, a partir do pensar, para que Deus seja mais real na história e que os pobres – a fome – deixem de sê-lo. Para que o pensar possa ajudar nessa tarefa, lembremos o que Ellacuría entendia por inteligir a realidade. Explicava-o em três passos:
- O primeiro é “assumir a realidade”; em palavras simples, captar como são e como estão as coisas. Em 2006, olhando o mundo universo, Casaldáliga escrevia: “Hoje, há mais riqueza na Terra, mas há mais injustiça. Dois milhões e meio de pessoas sobrevivem na Terra com menos de dois euros por dia, e 25 mil pessoas morrem diretamente de fome, segundo a FAO. A desertificação ameaça a vida de 1,2 milhões de pessoas em uma centena de países. Aos emigrantes é negada a fraternidade, o solo abaixo dos pés. Os Estados Unidos constroem um muro de 1,5 mil quilômetros contra a América Latina. E a Europa, ao sul da Espanha, levanta uma cerca contra a África. Tudo o que, além de iníquo, é programado”. O presente não o desmente.

- O segundo passo é “encarregar-se da realidade”. Sua finalidade não consiste simplesmente em fazer crescer conhecimentos por bons e necessários que sejam, mas em fazer crescer a realidade. E em uma direção determinada: a da salvação, da compaixão, da misericórdia e do amor. A teologia é intellectus amoris.

- O terceiro passo é “carregar a realidade”, e com uma realidade que é pesada. Sob ela vivem os anawim da Escritura, os encurvados. A carga que pode fazer até com que privem a vida de alguém. Teólogos e teólogas sofreram perseguição, e alguns acabaram mártires. Isso pode acontecer quando o fazer teologia está perpassado de atitude ética.
Costumamos acrescentar um quarto passo: “deixar-se carregar pela realidade”. O trabalhar e o sofrer assim também podem ser graça para quem faz teologia. Então, o teólogo sabe que faz parte do povo pobre, não é externo a ele. Sabe que é levado por ele e recebe o agradecimento dos pobres. Fazer teologia é, então, “uma pesada carga leve”, como dizia Rahner, que é o Evangelho.
(Fonte: entrevista Revista IHU, outubro 2012)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Teologia no espaço público

J. Konings
Minhas reflexões sobre o ser cristão devem ter um lugar no espaço público, ao lado da economia e do futebol. Ainda que Deus me seja mais íntimo do que meu próprio íntimo, como disse Agostinho, o lugar onde ele manifesta sua presença é o mundo que eu habito e que me habita –e que me dá as palavras do meu dizer.

Deus não é um passageiro clandestino, confinado no espaço sagrado. A fé em Deus não é propriedade particular, mas riqueza a ser partilhada. A teologia, explicação de nossa percepção de Deus e de nossa fé, não deve ficar reservada a correligionários usando jargão inacessível. Não é só para padres e assemelhados, enquanto para os fiéis comuns bastaria o Catecismo. Aliás, o próprio Catecismo se apresenta na linguagem da teologia ensinada nos seminários... Melhor seria se fosse a da teologia pública!
Convém que a explicação da fé cristã seja oferecida no espaço público, em diálogo com os interlocutores honestos e sinceros que aí se encontrarem, crentes ou não. Em primeiro lugar, porque aquilo que não se pode explicar aos outros ‘animais racionais’ talvez não seja racional. Por racional não entendemos o raciocínio formal, silogístico, mas aquilo que razoavelmente se pode conversar com as pessoas normais, mostrando que faz sentido e não é absurdo.

Uma segunda razão para o diálogo público da teologia é que esta se insere numa tradição cultural, dela se alimenta e, por sua vez, a enriquece. Os autores bíblicos não recearam acolher, dos povos vizinhos, determinadas imagens, símbolos e conceitos que traduzissem a própria percepção de Deus –adaptando-os e marcando as devidas diferenças. Isso lhes permitia dialogar com seus semelhantes que encontravam no intercâmbio cultural, comercial etc. O grande exemplo de ‘inserção cultural’ foi a teologia dos primeiros cristãos, que traduziram os conceitos e imagens bíblicos, enraizados na cultura judaica, para o mundo grego e latino, contribuindo decisivamente para a cultura da Ásia ocidental e da Europa.

Uma terceira razão é que a teologia pode apontar para todos os dotados de razão os limites dessa mesma razão, e isso faz bem. É importante poder dizer, em termos que as pessoas em geral entendem, que nossa percepção humana não é a última palavra (nem a primeira). A teologia traduz para a compreensão universal almejada pela racionalidade –e consciente dos limites desta–, a percepção subjetiva da transcendência, a poesia e a mística, sem as quais o ser humano, crente ou não, se torna inumano. 

Uma quarta razão é que a teologia fala de coisas práticas que devem ser partilhadas com os demais sujeitos no espaço humano e cidadão. Por exemplo, a questão operária. Toda a tradição bíblica judaica e cristã insiste no tratamento justo do trabalhador. “No próprio dia darás ao trabalhador seu salário, antes do pôr do sol” (Deuteronômio 24,15). Isso não pode ficar escondido no debate público em torno do trabalho. Outro exemplo: o cuidado do meio ambiente. A representação bíblica de Adão como jardineiro e cuidador do jardim do Éden (Gênesis 2,15) contém uma mensagem para o atual debate. O mesmo se diga da unidade de homem e mulher, unidos em amor constante, que se desprende de Gênesis 2,23-24. O crente não pode guardar suas convicções práticas para si, a não ser que se encapsule numa sociedade à parte. O que, hoje em dia, seria impossível, pois há muito gente se movimentando no mesmo espaço...
Na mesma linha, em vista inclusive da atual histeria em torno do ‘Estado laico’ – que já espetei e tornarei a denunciar–, não se pode excluir do espaço público, nem da discussão política, compreensões da vida humana e opções práticas inspiradas pela convicção religiosa. Esta é tão humana quanto uma ideologia política. Desde que tal convicção seja argumentada em contexto e modo democráticos.

Finalmente, importa contemplar o diálogo entre as diversas religiões e mundivisões, mesmo ateias ou agnósticas. Mas isso exige uma explanação mais ampla, que deixo para outra oportunidade.
Cristãos menos acostumados a esta abordagem talvez temam que tal teologia saia do âmbito da fé e se torne ‘secularizada’. Isso seria perigoso somente se ‘secular’ significasse alheio a Deus. Mas se se entende por secularidade o que diz respeito à realidade do mundo (‘saeculum’ em latim significa mundo), é um grande avanço para a fé, pois torna Deus mais presente no mundo que ele mesmo fez e faz surgir. A ‘encarnação’ de Deus é uma doutrina fundamental da fé cristã. Por isso, o mundo humano deve ser o mundo em que a presença e ação de Deus são ‘levados à fala’. Entre pessoas respeitosas, deve ser tão natural falar de Deus e de sua fé como falar de futebol (o que também só se deve fazer com pessoas que tenham respeito...).

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Tradição intelectual

Para mim, tradição intelectual é um benefício inestimável. Significa não começar tudo de zero, mas sentir-se rico, desde o começo, do cabedal de trabalho, de pesquisa, que nos foi legado pelos que nos precederam. A tradição é um certo clima no qual nascemos para a vida do espírito. É o que nos permite inscrever nossos próprios talentos, nossos próprios esforços, nossas próprias pesquisas numa continuidade que os enriquece. Uma tradição é para a vida intelectual o mesmo que a fraternidade para nossos corações.

Sim, tradição é um benefício inestimável. Deve ser assim para o jovem estudante que entra numa comunidade que dispõe de uma tradição intelectual, como o é para uma criança que nasce numa família culta : antes mesmo de aprender a ler, essa criança já entra num certo clima, já respira um ar que vai facilitar sua entrada no mundo da cultura. Pude me dar conta e apreciar ainda mais esse benefício quando conheci províncias dominicanas de fundação mais recente, e que não beneficiaram antes dessa herança intelectual. É bonito e entusiasmante começar de zero uma fundação; mas é preciso muita inteligência, muito empenho e dedicação ao trabalho para superar essa lacuna.”
Fonte: Yves Congar, Une vie pour la vérité. Jean Puyo interroge le Père Congar, coleção « Les interviews », Ed. Le Centurion, Paris, 1975, p. 35 (tradução: Magno Vilela)