domingo, 4 de dezembro de 2011

O momento atual da teologia

Nesta entrevista concedida a Flávio Senra, o teólogo João Batista Libanio apresenta um quadro resumido dos principais desafios e oportunidades da Teologia no atual cenário brasileiro.

Como você avalia a situação atual da Teologia?
O mapa teológico apresenta-se vastíssimo. Difícil de emitir juízo global. A tendência acadêmica atual, forte nas universidades e incentivada pela CAPES, acentua a especialização em autores, textos cada vez mais restritos. Avança-se em profundidade textual. Perde-se em amplidão de horizontes, em sínteses complexas. Abrem-se novos campos de estudo como o da teologia das religiões. Faustino Teixeira tornou-se referência importante nesse setor. Com efeito, a proliferação dos cursos de Ciências das Religiões está a produzir literatura de diálogo nessa fronteira. Falta ainda clareza. Mas progride-se em oferecer alimento religioso para ambientes alheios à fé cristã.
A espiritualidade tem seduzido excelentes teólogos e teólogas. Assinalo aqui alguns últimos escritos de Maria Clara L. Bingemer, além de Faustino Teixeira que visita bastante esse departamento teológico. A ecologia tem ocupado as principais preocupações de L. Boff com vastíssima obra. Os clássicos tratados de teologia ainda provocam textos dirigidos principalmente aos estudantes e interessados pela teologia. Além da coleção Teologia e Libertação, que infelizmente por razões de contingências adversas encerrou o projeto de uns 50 volumes, publicando um bom número de 30, a editora espanhola Siquém em convênio com as Paulinas vem publicando manuais de teologia de nível médio na coleção Livros Básicos de Teologia. A FAJE prossegue na publicação das coleções Bíblica e Theologica com obras de peso.

Predomina no momento a literatura teológica de consolo, de autoajuda com tiragens altíssimas, de conteúdo fluido, superficial e midiático. Sob certo sentido, cresce o mercado teológico, mas não dos livros de peso e sim os de divulgação espiritualizante. Percebe-se queda do interesse pelo estudo sério da teologia no meio do clero e dos religiosos/as. Em compensação, aumenta a faixa de leigos que procuram aumentar a cultura teológica. No Brasil ainda se considera luxo comprar livro. Em qualquer pequeno aperto orçamentário, risca-se esse objeto da lista enquanto entram objetos supérfluos de consumo, especialmente eletrônico.

O novo mundo produzido pela técnica e seus desafios para a compreensão da vida, o esgotamento do modelo das sociedades de consumo, a revolução sexual e as novas configurações da família, a situação da pobreza e o desafio ecológico, o colapso dos sistemas de representação e a nova geopolítica global, os fundamentalismos religiosos estão em destaque na pauta mundial. Como a teologia pode se posicionar neste cenário?
De fato, a pergunta elenca ladainha pesada de problemas que desafiam a vida do cristão. E a teologia oferece-se como reflexão sobre a fé. Nesse sentido, afetam-na todas essas questões.
A técnica está a transformar a cultura cada vez mais intensamente. Nos inícios, ela aliviava o corpo do peso muscular. Em vez de capinar horas a fio, o trator liberou os braços do camponês. Para quê? Teilhard de Chardin imaginou que iríamos ter mais tempo para tarefas intelectuais e espirituais. Talvez tenha resultado, em parte, verdade. As pessoas começaram a dispor de mais tempo livre para lazer e outras atividades.

Nesse momento, porém, a tecnologia avançou e prolongou os sentidos, especialmente o ouvido e a vista com enorme parafernália de TV, vídeos, DVDs, etc. Ela entra precisamente quando o espaço vazio do trabalho manual poderia ser preenchido por atividades intelectuais e espirituais. No entanto, acabou ocupando as pessoas com programas de TV que primam por muita estupidez e alienação, sem desenvolver necessariamente a capacidade intelectual nem espiritual. Há, porém, na pluralidade de canais ofertas de melhor nível, freqüentadas menos pelas grandes massas.
No atual momento, a tecnologia pretende mais. Quer afetar diretamente o cérebro, ampliando as possibilidades de conhecimento, sobretudo pela Internet e pelo conjunto de possibilidades que ela abre. De novo, a ambiguidade desse meio tem produzido efeitos realmente de avanço cultural como de degradação moral. Então, desafia a fé cristã assumir tal avanço tecnológico das três ondas e oferecer alimento cultural e espiritual.

No referente à sociedade de consumo, não diria que no Brasil ela demonstre sinais de esgotamento. Antes, alardeia-se nos jornais o acesso das classes C e D ao consumo. E a crise financeira atual tem produzido menor impacto sobre a economia brasileira, em parte devido ao crescimento do consumo da população. Mais. Infelizmente a mentalidade consumista cresce, especialmente no meio das crianças e dos jovens. Aqui a teologia de viés ecológico tem trabalhado para acordar o cristão para vida de sobriedade a partir da mensagem e prática de Jesus.
A revolução sexual tem tido positivas influências na teologia, a começar por as mulheres assumirem papel protagonista na produção teológica que vai além da reflexão sobre a mulher. Interpreta toda a teologia sob o ponto de vista da mulher com reflexões originais. Além disso, a temática sexual interessa cada vez mais a teólogos/as, apesar de toda dificuldade no interior da Igreja católica de tratar de tal assunto. Haja vista o livro do teólogo inglês J. Alison, radicado no Brasil. Obra inteligente de fina sensibilidade, de densidade e de alto nível teológico [Fé Além do Ressentimento. Fragmentos católicos em voz gay. São Paulo: É Realizações Editora, 2010].

A temática da família tem merecido relevo, talvez mais em cursos e palestras do que em escritos. Outro tema bem delicado em face da pluralidade de famílias e de relações entre cônjuges que se constituem e buscam legitimidade ético-social. E as religiões têm tido dificuldade em enfrentar tal problemática por conta de suas longas tradições firmadas na leitura bíblica de família monogâmica, entre homem e mulher em vista da procriação com vínculo estável. O mapa familiar da atual sociedade embaralha a vista de quem se põe nesse horizonte único.
A situação dos pobres permanece, na presente sociedade, igualmente ou senão mais grave. À condição de empobrecido socioestruturalmente soma-se-lhe a de segregado da cultura informatizada, agravando-lhe a exclusão. Pobres se tornam invisíveis no sentido de serem alijados para as periferias distantes e, sob certo sentido, escondidos atrás de aparência melhorada e até, não raro, com acesso a celular e outros produtos eletrônicos. Não se sabe a custo de quê. Continua válida a preocupação fundamental da teologia da libertação de batalhar na linha da emancipação dos pobres antigos e novos.

Já apontei o problema ecológico como grave e urgente interrogante para a teologia. Mais uma vez menciono o ingente trabalho teológico de L. Boff. Assistimos a certo colapso dos sistemas de representação e ao surgimento de nova geopolítica global. A teologia política e a teologia pública, bem próximas da teologia da libertação, assumiram a tarefa de pensar tal questão. Teólogos/as, especialmente ligados/as ao Instituto Humanitas da Unisinos, têm produzido e recolhido de todas as partes contribuições significativas nesse campo.

E finalmente a pergunta se dirigiu aos fundamentalismos. Os teólogos das religiões e do diálogo interreligioso debruçam-se sobre tal tema. Na minha análise, cabe diferença básica entre religião, religiosidade e fé. A religião, como tal, não gera e não dissolve violências nem fanatismos nem fundamentalismos. Depende de que doutrinas religiosas ela administra. Além disso, a religiosidade responde primordialmente à experiência das pessoas no interior de uma cultura. A fé, por sua vez, remonta à revelação. Essa trilogia necessita ser distinguida e articulada. Remeto o leitor à reflexão que fiz em que distingui e articulei religião, religiosidade e fé [A Religião no início do milênio, 2º ed. São Paulo: Loyola, 2011, p. 87-110]. Conforme se entenda cada uma dessas dimensões religiosas, a problemática se encaminha em direções diferentes. A imprensa mistura os campos, gerando imagem negativa de toda religião e fé. A teologia tem elementos para contrapor-se a tal jogada ideológica, situando a questão nos diversos momentos da história.

O reconhecimento civil da Teologia abre um novo cenário para o ensino teológico. Também o surgimento de novas escolas teológicas tem apontado outras perspectivas do ensino. Em que esta realidade favorece a produção teológica?
A multiplicação de Institutos e Faculdades teológicas está a produzir dois efeitos antitéticos. De um lado, tem feito aumentar o interesse pela teologia e assim tem estimulado o crescimento da produção teológica. O aumento do público provoca as fábricas de teologia a se multiplicarem e a ampliarem a própria produção segundo a demanda do mercado. Negativamente, porém, corre-se o risco de baixar o nível da produção por afã de satisfazer rapidamente ao consumismo religioso. Além disso, o maior número de graduados e pós-graduados permite aceder mais facilmente a esse grau, sem tanta preparação e capacidade teórica. Teme-se isso muito mais nas Instituições de corte pentecostal e neopentecosal que sofrem maior pressão de crescente clientela a exigir mais teologia para seu consumo.

sábado, 29 de outubro de 2011

Novo livro de Introdução a Teologia

Veja a entrevista sobre a nova edição do livro "Introdução à Teologia", de J.B. Libanio e Afonso Murad, no programa "Religare".

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Tarefa hermenêutica da Teologia

A teologia é hermenêutica da fé, pois interpreta e organiza os dados revelados, vividos e compreendidos na/pela comunidade eclesial, em diferentes contextos socioculturais e históricos. Caso não exerça essa missão, as formulações de fé se tornam anacrônicas, reduzindo-se, com o tempo, à recitação de fórmulas de pouca inteligibilidade. A hermenêutica faz parte intrínseca do próprio conceito e da identidade da teologia.
A tarefa hermenêutica sempre existiu, mas a consciência explícita de sua utilização soa relativamente nova. No esquema mental vigente até o advento da modernidade, pensava-se que o ato de conhecer visava a alcançar de forma definitiva o sentido único do texto. A verdade já estava fixada. Bastava ter acesso a ela, desobstruindo o olhar. Daí a concepção clássica de que a verdade é a adequação da mente ao objeto, à realidade. Nesse contexto, até a palavra “interpretação” ecoava estranha, desnecessária. Em visão estática, a revelação divina se entende como conjunto de verdades eternas que possuem formulação definitiva, emanadas diretamente da Bíblia e da doutrina fixada pelas Igrejas cristãs. Como frequentemente não se leva em consideração as coordenadas culturais de tempo e espaço na formulação dos dados da fé, não se pensa em reformulá-los quando estas coordenadas se modificam. Interpretam-se as mudanças históricas, na organização da sociedade ou no pensamento como desvios da ordem cristã. Não constituem então fator coadjuvante na elaboração teológica. Nesta concepção, existe uma “teologia perene” que desvela, de forma inequívoca, as questões centrais da fé. As formulações necessitam somente ser entendidas, adaptadas, aplicadas, mas não reelaboradas.
Vários fatores levam a perceber a necessidade da hermenêutica, tais como a descoberta da historicidade, a valorização das culturas, o reconhecimento do sujeito cognoscente e da realidade social.

a. Historicidade e subjetividade
A consciência da historicidade e a compreensão de como acontece o processo do conhecimento levam a perceber que a verdade não preexiste inteiramente de modo objetivo. Assim, já não se considera o cristianismo como depósito ou sistema objetivo de verdades prévias à realidade histórica. A verdade se experimenta como busca, dependente da historicidade concreta, fundamentalmente processual e contextualizada, sem deixar de ter valor universal; do contrário só existe como abstração conceitual.
A descoberta do valor das culturas e dos condicionamentos na interpretação da fé confere à tarefa hermenêutica singular importância. O cristianismo atual resulta de vários processos de inculturação. Nascido no meio oriental semita mediterrâneo, expande-se para o Ocidente. Faz a passagem do horizonte judaico para o helênico. Já nos inícios, realiza reinterpretações múltiplas, como mostram os escritos das escolas de Alexandria, Antioquia e Capadócia. Na passagem para a Idade Média, assimila padrões, valores e comportamentos de vários povos. Posteriormente, incorpora a filosofia aristotélico-tomista em seu pensar. No surgir das Igrejas da Reforma, incidem importantes fatores culturais do advento da modernidade, como a valorização da subjetividade e a relativização da tradição. Assim, no correr de sua longa história, o cristianismo assumiu, conscientemente ou não, a influência de muitas formas de pensar e de agir. Configurou-se com paradigmas e modelos de compreensão (cf. capítulo 7).
Hoje, quando se reconhecem os valores das culturas autóctones e se aceitam os elementos positivos da pluralidade na sociedade moderna, as Igrejas põem-se a reinterpretar os dados de fé para novas situações e novos contextos. Não se renuncia com isso ao núcleo do cristianismo para fazê-lo palatável e “pronto para o consumo” no mercado religioso. Ao contrário, busca-se fidelidade ao Evangelho, mantendo seu caráter de “Boa-nova” compreensível, significativa e interpeladora (cf. capítulo 6).
Qualquer ato de conhecer passa necessariamente pela pessoa, situada em determinada comunidade linguística e cultural. Ao interpretar, o sujeito cognoscente imprime sua maneira de ser. O conhecimento não é totalmente objetivo. Sujeito e objeto do conhecimento interagem. Quando alguém lê a realidade, interpreta-se a si e posiciona-se diante dela. O teólogo ou qualquer outro cristão possui uma “pré-compreensão” (em alemão Vorverständnis) derivada do somatório de experiências vividas, refletidas e assimiladas. A pré-compreensão exerce efeito seletivo sobre o conhecimento. Atua qual filtro, ao deixar passar alguns elementos e reter outros. Dirige a luz para uns aspectos, ficando outros na sombra.
Cabe à teologia tanto levar em conta a participação ativa do sujeito que conhece, faz, lê e ouve teologia como evitar que a elaboração do discurso teológico se reduza à mera produção subjetiva ou corporativa. A teologia descortina a pré-compreensão dos cristãos e das Igrejas e, à luz da revelação e dos sinais dos tempos, amplia o horizonte de compreensão, visando ao diálogo salvífico de Deus com a humanidade. A reflexão teológica contemporânea defronta-se com a pergunta de fundo: “Que sentido tem, para o homem, a mulher de hoje, determinado tema? Em particular, que aspectos de sua existência a fé ilumina?”

b. Dimensão social
O espaço vital da pessoa transcende a subjetividade. A existência individual, de valor inegável e irredutível, constrói-se em sociedade. Na América Latina e no Caribe, vários aspectos caracterizam a dimensão social da existência humana. Entre eles, citam-se: o escândalo ético da concentração de riqueza, gerando situações extremas de pobreza; a pluralidade étnica de nossos povos, com matrizes europeias, indígenas e africanas, a ponto de gerar culturas nacionais com forte acento mestiço; a inserção dependente no mercado internacional, exportando commodities e produtos de baixo valor agregado e importando tecnologia e produtos de alto valor agregado; a exploração irracional dos recursos naturais, com a destruição dos biomas e a perda de biodiversidade; a crescente consciência ambiental nas pessoas e na sociedade civil; os processos acelerados de urbanização, levando a mudanças significativas na configuração demográfica e nas culturas; a degradação da política, contaminada pela corrupção e pela impunidade; a eclosão de novos movimentos e tribos urbanos entre os jovens; o crescimento do voluntariado; o surgimento de novos movimentos sociais e o declínio de outros; a luta dos governos contra o narcotráfico; o desenvolvimento de religiosidade intensa, mágica, massiva e individualista, que convive com o lento crescimento do indiferentismo religioso. Esta lista ilustrativa poderia ser ampliada ou modificada, a partir de diferentes critérios de leitura do presente cenário.
A fé cristã tem irrenunciável dimensão social, que extrapola a soma de indivíduos isolados ou de pequenas comunidades. A Boa-nova de Jesus, atualizada pela comunidade de seus seguidores, não se dirige somente a cada pessoa, mas também pronuncia palavra interpeladora à realidade estrutural do ser humano em sociedade, que habita a Terra. Isto implica levar em conta as múltiplas dimensões (social, cultural, econômica e ecológica) que constituem o humano. E isso faz parte da tarefa hermenêutica da fé. Não se trata somente de interpretar a Bíblia e a doutrina eclesial para responder aos apelos das subjetividades, mas também de compreender à luz da fé as grandes questões coletivas que hoje afligem e mobilizam a humanidade e colaborar para edificar o mundo de acordo com a vontade de Deus.
O perverso processo de concentração de renda, que ainda persiste em nosso continente, não deriva de calamidades imprevisíveis ou de carência de recursos naturais, mas de mecanismos estruturados. Sustenta-se numa ideologia (forma de pensar parcial que dissemina os interesses da classe dominante) que se expressa na religião, nos hábitos sociais, na escola e na mídia. Da forma análoga, a crescente destruição dos ecossistemas é fruto de visão equivocada do progresso e do desenvolvimento infinitos, que gera enorme passivo ambiental para as futuras gerações. Nesse contexto, a hermenêutica teológica assume função desideologizadora. Ajuda a remover as inferências da ideologia dominante, que entra no discurso cristão. Realiza-se a “libertação da teologia”, tarefa preconizada por J. L. Segundo. Então, a fé estimula práticas sociais justas, fraternas e sustentáveis.
A teologia latino-americana tematizou de forma ímpar a relação entre reflexão sistemática e óptica interpretativa com o axioma: O lugar social condiciona o lugar hermenêutico. O teólogo, encarnado em situações humanas diversas, ouve os clamores que surgem daí, sente a interpelação ética, vê o rosto de Deus nas vitórias do bem e no “reverso da história”. Levanta perguntas em que seu colega, encastelado no ambiente acadêmico, jamais pensou. Encontra sinais de Deus onde parecia não haver nada. Junto com outras pessoas, busca soluções humanizadoras, pois problemas reais não se solucionam apenas na academia ou na realidade virtual.
A teologia recupera assim a dimensão metacientífica. O impulso da atuação teológica não brota somente do desejo de conhecer as realidades divinas, mas também do empenho em viver o novo mandamento de Jesus: a caridade-solidariedade. J. L. Segundo denomina este fator “momento pré-teológico” do círculo hermenêutico da fé. O conhecimento começa com a indignação ética, com o desejo de fazer-se irmão/irmã, de compartilhar história comum. Por vezes, tal sentimento se torna visceral. O pathos, a paixão solidária impulsionam o saber.
Em consonância com a teoria da complexidade, a hermenêutica da fé conjuga fatores que antes se consideravam incompatíveis: olhar apaixonado e distanciamento científico, envolvimento em realidades humanas concretas e elaboração crítica, aprender da Bíblia e da tradição e também com os “sinais dos tempos” da atualidade. No dizer de Paulo Freire, exercita-se a “razão encharcada de emoção”, contextualizada e histórica.

Afonso Murad
Livro: Introdução à Teologia, cap 8, Ed. Loyola, 2011.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Teologia Feminista Hoje

A teóloga Claudete Ribeiro de Araújo apresentou um quadro panorâmico a respeito dos Desafios e perspectivas das Teologias Feministas na América Latina. Veja a síntese de seu artigo.

(1) Contribuição que as teologias feministas vêm dando à produção teológica:
- A descoberta de um mundo pluricultural e multirreligioso, que gosta da diversidade e que não tem pretensão de se fechar em única experiência religiosa. O diálogo se dá com a apropriação e a somatória das experiências religiosas que alimentam o cotidiano. Assim, a Teologia é sempre plural porque as experiências religiosas também o são.
- A elaboração da hermenêutica da suspeita permite teologizar a experiência religiosa dos grupos culturais. Deus não está encerrado apenas na Bíblia ou nos textos sagrados.
- O uso de outras formas de linguagem. As canções, os poemas, as danças e os rituais também são formas orais e escritas de elaboração teológica.
- A superação da influência grega no pensar teológico, pois a reflexão não é mais dual e nem está em contraposição. Há uma reflexão com pensamento global na qual o pessoal não é separado do estrutural e nem o transcendente separado do imanente.
- A reformulação da teologia do sofrimento.
- A construção de novas imagens de Deus no discurso religioso. Como nas comunidades eclesiais existem homens e mulheres fez- se necessário usar muitas e múltiplas imagens para se falar de Deus.

(2) Dificuldades e desafios para uma produção feminista na América Latina:
- As estudantes de Teologia têm acesso a artigos e livros de Teologia escritos por homens e têm de provar seu conhecimento e sua aptidão para a produção teológica a partir de seus conhecimentos nesses escritos.
- Todos os livros sagrados foram escritos por homens e interpretados historicamente por eles. Também os mediadores do divino sempre foram homens:
- As mediações entre o divino e o mundo são visões masculinas e os processos de salvação sempre foram elaborados por homens. As religiões consideradas menores têm mediações femininas, mas essas são consideradas pejorativas e desqualificadas pela Teologia.
- As teologias feministas têm sido depreciadas por serem produzidas por mulheres que trazem sua experiência corporal na produção teológica. Essa desqualificação está ligada à depreciação milenar do corpo, na medida em que a Teologia se ocupou das “coisas do espírito”. Quebrar esse dualismo se faz necessário, pois a vida humana acontece no corpo assim como toda experiência religiosa.
- Muitos institutos de Teologia não têm pessoas com conhecimento de teologia feminista, não podendo assim multiplicar discípulos(as) ou mesmo acompanhar trabalhos que resultariam numa sistematização de temas teológicos importantes para a realidade atual e mais respostas para a realidade latino-americana.
- As religiosas pouco têm se despertado para a formação intelectual na Teologia e em outros saberes. Elas poderiam contribuir não só na refundação da vida religiosa a partir de perspectivas feministas, como também para diminuir as contradições existentes nas estruturas eclesiásticas na medida em que assumissem suas opções com mais profundidade e conhecessem outros espaços de atuação no mundo.

(3) Sugestões para o crescimento das teologias feministas na América Latina:
- Nova leitura da história, pois ao reler a história, as mulheres encontram espaços religiosos, contextos sociopolíticos, culturas e costumes. Descobrem que foram sujeitos e que sempre tiveram poder, resgatam a auto-estima que permite construir nova identidade. Somente a partir dessa leitura é possível criticar a cultura.
- Incentivo dos estudos superiores das mulheres, não apenas na graduação, mas nos estudos posteriores que as levem à conclusão de seus estudos, para que possam assumir os trabalhos acadêmicos nas universidades e nos institutos teológicos, preparando outras mulheres e homens em seus estudos, produzindo teologia a partir de sua experiência e ajudando a conhecer os diferentes diálogos que se vêm processando na base dos movimentos teológicos.
- Investimento concreto por parte das universidades e institutos nas mulheres preparando-as para os estudos teológicos e/ou contratando-as como professoras.
- Inclusão, na grade curricular dos cursos de Teologia, de disciplinas como a metodologia feminista e/ou os estudos feministas como matéria de teologia fundamental na elaboração teológica, permitindo assim que os novos estudantes de Teologia tomem conhecimento e aprendam bebendo das diversas produções teológicas que vêm sendo elaboradas nos diversos continentes.
- Construção de uma nova abordagem sobre sexualidade e sobre o tema mariano a partir da hermenêutica da suspeita, pois na construção teológica Deus foi sempre masculino e Maria foi sempre a mulher. Essa reconstrução sobre Maria precisa acontecer junto com a reconstrução da identidade de Deus, na medida em que se carregue Deus com as chamadas características femininas e Maria com as conhecidas características masculinas.

Por fim, as teologias serão cada vez mais fiéis a si mesmas na medida em que a categoria de gênero estiver presente nas produções teológicas (na teologia moral, na exegese bíblica, na teologia sistemática e fundamental, nas disciplinas auxiliares ou chamadas instrumentais). A análise teológica a partir do género não é exclusividade da teologia feminista, ela deve permear e carregar todo tipo de produção teológica, até a Teologia da Libertação, porque permite a desconstrução de conceitos e dogmas construídos no passado e a tradução da tradição. O gênero não é um problema das mulheres, mas da cultura e, portanto, diz respeito a homens e mulheres, O conceito de gênero permite mudar as relações entre as pessoas e, portanto, a realidade.

(Síntese de C. Ribeiro de Araújo, Desafios e perspectivas à produção teológica a partir da contribuição das teologias feministas in: AA.VV, Sarça ardente. Teologia na América Latina. Prospectivas. São Paulo: Paulinas – SOTER, p. 238-248)

terça-feira, 17 de maio de 2011

O que é Ecoteologia

O mundo dá muitas voltas, e certas convicções de raiz retornam com novos matizes. A cultura da modernidade, a partir dos séculos XIV e XV, proclamou com orgulho a submissão da natureza ao ser humano. A filosofia moderna segue o mesmo caminho, ao sustentar a centralidade do homem, com a autonomia da razão científica, filosófica e subjetiva. A sociedade urbano-industrial e o progresso ilimitado pareciam um sonho sem fim. O antropocentrismo é uma tendência irreversível a se consolidar em todo o orbe. Mas algo levou a questionar tal visão: a consciência planetária. Somos filhos da Terra e responsáveis pelo seu futuro.

A contínua degradação do ecossistema, a crise da pretensão de totalidade da ciência, a crescente consciência do desenraizamento do ser humano em relação ao mundo natural e outros fatores criam condições favoráveis para a eclosão de vigoroso movimento ecológico no mundo inteiro.
A ecologia pode ser compreendida como ciência, ética e paradigma. As três dimensões se completam. Enquanto ciência, ecologia significa o estudo de como se inter-relacionam todos os seres que constituem a “comunidade de vida” em nosso planeta: os seres abióticos (água, ar, solo e energia do sol), os seres bióticos (microrganismos, plantas e animais) e o ser humano. Nascida da biologia, a ecologia ultrapassou seu campo inicial de conhecimento, ao propor estudar as relações, os contextos, e não somente determinados seres vivos em seu hábitat. Forja-se então a categoria “interdependência”: todos os seres estão em rede e as redes de matéria e energia são constitutivas na teia da vida.

A começar de seu objeto formal e do método, a ecologia postula a colaboração de muitos saberes. Somente se compreendem as relações na esfera da vida do planeta (biosfera) recorrendo simultaneamente a várias ciências, como biologia, física, química, geografia etc.... Fator semelhante acontece quando se estuda a ecologia humana, ao somar abordagens multidisciplinares da psicologia, da sociologia, da geografia humana, da economia, da história etc.
A abordagem científica da ecologia aproxima-se da teoria da complexidade de E. Morin, por reconhecer a incerteza e a incompletude como parte do conhecimento, que se mantém aberto para tecer novos fios e perceber relações ainda não compreendidas. A ecologia se liga também à holografia e a holística, enquanto percebe que em cada ser, biótico ou abiótico, há uma parte do cosmos, e que o todo é maior do que a soma das partes. A ecologia também se tornou um viés que influencia várias ciências teóricas e aplicadas, pois seu interesse se dirige à sustentabilidade, ou seja, a continuidade da vida no presente e no futuro do planeta. Daí surgem, por exemplo, a arquitetura e construção sustentáveis, a engenharia ambiental, o ecodesign na concepção de produtos, a gestão ambiental...

Ecologia, enquanto ética, diz respeito ao despertar da consciência (ecopercepção) e a empreender ações que tenham em vista a sustentabilidade. Inicia-se com a percepção de que a atual forma de o ser humano se relacionar com o ecossistema está equivocada e levará a humanidade e nossa “casa comum” a desastre sem precedentes. As mudanças climáticas fazem perceber, de forma inequívoca, que a atuação irresponsável do ser humano em relação ao ecossistema tem consequências graves e simultâneas, tais como alteração do ciclo das estações, perda da biodiversidade, contaminação (do solo, do ar e da água), perdas econômicas na agricultura, aumento de doenças respiratórias, custos econômicos não contabilizados e externalizados, etc.

A ética ecológica articula, de forma nova, a questão do indivíduo, do grupo, da instituição e das estruturas sociais e econômicas. Ela rejeita a exclusividade de fatores e a oposição entre subjetividade e coletividade. Propugna que a sociedade ecologicamente sustentável é possível quando se somam, de forma interdependente, atitudes individuais, ações familiares e coletivas, gestão institucional, adoção de políticas locais e nacionais, além de acordos internacionais em forma de protocolos vinculantes.
Assim, sustentabilidade postula também novo ethos humano e sociopolítico. Implica mudança de hábitos pessoais e comunitários de consumo e descarte. Interfere no processo de extração, produção, distribuição, consumo, descarte (ou reciclagem) dos bens e nos serviços a eles associados. Compreende por isso o triple botton line: econômico, social e ambiental. Transforma-se numa das grandes causas da humanidade, no presente e no futuro. Exige que o ser humano recubra o olhar de encantamento, percebendo que os outros seres não são “coisas”, que tome consciência de seu impacto sobre o planeta, da “pegada ecológica”, e assuma novas atitudes.

O paradigma ecológico, por sua vez, consiste na crítica e na superação do antropocentrismo moderno. O ser humano pode até se compreender como “centro consciente do universo conhecido”, mas ele nunca está sozinho. A espécie humana é fruto de longuíssimo processo de evolução da matéria. Somos filhos da Terra e parte da Terra. Por isso, a consciência planetária implica ética planetária: é preciso cuidar da Terra. Assim, ciência e ética se fundem, sem perder a especificidade, num modelo de compreensão do ser humano que se percebe como parte do meio ambiente e em contínua relação de interdependência com ele.

Qual a originalidade da ecoteologia, neste contexto? Brevemente:
— Trata-se de reflexão que resgata a unidade da experiência cristã e de sua formulação, apresentando em seu discurso a relação entre criação, história, encarnação, morte e ressurreição de Jesus, e o início da nova criação.
— Reelabora a teologia da criação na perspectiva da interdependência, mostrando que o ser humano, nos relatos bíblicos, é feito por Deus do barro da terra (consciência ecoplanetária), para cuidar do jardim, assim como para servir-se das outras criaturas, exercitando o senhorio como Deus é Senhor. Há relação estreita entre criação e salvação, e todos os seres estão nelas implicados.
— Explicita e fundamenta a ética do cuidado com o mundo, em ligação estreita com a moral social, ampliando sua abrangência.
— Propõe-se a superar a fragmentação das disciplinas teológicas e, na linha da teoria da complexidade, empenha-se no diálogo efetivo com as “ciências da natureza”.
— Estimula a espiritualidade ecológica, que associa no louvor e no serviço todos os seres à obra criadora, redentora e santificadora da Trindade.
— Estabelece teias de mútua aprendizagem com a teologia da libertação (dimensão social da fé), a teologia feminista, a teologia afro-ameríndia e a teologia das religiões.

A ecoteologia, que apenas se delineia no momento, contribui para superar visões equivocadas ou restritivas da relação do ser humano com o ambiente, assim como de sua própria autocompreensão. Ao se rebelar contra o racionalismo moderno e sua sede ilimitada de tudo explicar e esquadrinhar, o ser humano pode resvalar em posturas irracionais. Confunde-se reencantamento com ingenuidade ou espírito mágico. Exemplos palpáveis se encontram nos discursos de certos grupos religiosos sobre o sentido da doença, do mal, da injustiça social e do destino. Contrariamente ao orgulho antropocêntrico, que tudo submete ao ser humano, proliferam as crenças numa infinidade de determinismos cósmicos sobre o devir individual e coletivo. Além disso, a categoria “energia”, retirada da física quântica, seria uma panaceia que tudo justifica, sem nada explicar.

A holística pode servir à construção do cristianismo atualizado, coerente e cheio de vida; boa-nova para homens e mulheres desesperançados em busca de um fio condutor, sedentos por nova forma de enfocar a posição do ser humano em relação ao cosmos. O fato de comungar com nova mentalidade, compartilhada por grupos não cristãos ou pós-cristãos, não implica aceitação incondicional de todos os componentes. Existem na holística “sinais dos tempos” e sementes do Verbo que pedem reconhecimento e valorização. Há que evitar, no entanto, um pretenso neouniversalismo que a tudo dilui e relativiza, esvaziando o conteúdo da proposta de Jesus Cristo, a novidade radical do Evangelho. Diferentemente do panteísmo, que abole as fronteiras entre o humano e o divino, a ecoteologia propõe o panenteísmo. Compreende que todos os seres estão em Deus e para ele se destinam, pois foram criados pelo Pai, por meio da Palavra (o filho), no Espírito. Este sustenta, renova e leva à consumação a criação.

Em suma, a ecoteologia contribui para ressituar o ser humano à luz da fé cristã, no momento atual de crise global, e contribui para consolidar a consciência planetária: somos filhos da Terra e responsáveis por seu futuro.

A ecoteologia tem diante de si duplo compromisso programático. O primeiro consiste em reenfocar temas e disciplinas teológicas, considerando a participação de todos os seres no projeto de redenção e a premência do compromisso ético com a “salvaguarda da criação”. O segundo compreende a adoção de novo paradigma, bioantropocêntrico, que influencia a epistemologia teológica e propugna a unidade entre o conhecimento intelectual e o experiencial-místico.
A ecoteologia se encontra em situação semelhante àquela vivida, faz alguns anos, pela teologia da libertação, quando adotou conceitos e categorias novos, e deve testar a pertinência, a legitimidade e a adequação deles. A dessemelhança reside no acento: não somente na práxis transformadora de cunho social, mas na também na postura ética e na mística que animam a existência humana na relação com a biosfera. Enquanto prática libertadora, a ecoteologia e sua vertente ética ampliam a percepção da prática libertadora, estimulando o compromisso socioambiental dos cristãos.

Afonso Murad
Fonte: Introdução a Teologia - Loyola, 2011, cap. 8.

quarta-feira, 16 de março de 2011



































































Disponibilizamos para você um esquema de aula referente à História da Teologia. Compreende o período da Patrística. Mais informações no cap. 3 do Livro "A casa da Teologia" e na literatura especializada (Prof. Afonso Murad).






















segunda-feira, 14 de março de 2011

O que é teologia?

A teologia pode ser comparada a uma árvore. Pois, assim como a árvore é composta de raízes, tronco, galhos e frutos, a teologia tem todos esses elementos.
A raiz da teologia é o próprio Deus. Ele é o fundamento de toda a teologia, sua fonte e seu ápice. Assim como uma árvore sustenta-se por suas raízes, pois são elas que a seguram firme na terra, assim a teologia firma-se em Deus, tendo ele como seu ponto de partida e de chegada.
O tronco de uma árvore pode ser comparado com uma “ponte”, pois os nutrientes que as raízes absorvem são levados até os galhos através do tronco e, produzindo assim seus frutos. Os meios de “produzir teologia” são as Sagradas Escrituras, tanto para católicos e protestantes e, para nós católicos, a Tradição e o Magistério Eclesiástico. Estes elementos nos ajudam a fazer teologia e levar a seiva que dá a vida para os galhos e a produzir frutos. Podemos chamar o primeiro elemento de Revelação.
Os galhos, as folhas e os frutos são sinais de que uma árvore está viva. Os diversos “galhos” da teologia seriam as diversas áreas de estudo e disciplinas desta ciência: dogmática, bíblica, histórica, moral, etc.
Os frutos, podemos comparar com o resultado da prática teológica, que aplicados na pastoral, nas comunidades e nos centros acadêmicos, frutificam, fazendo expandir o Reino de Deus no mundo.
Cada fruto trás em si sementes. A teologia também, e está aí a frutificar!
Emerson Andrade
Estudante do primeiro ano de teologia do ISTA, Belo Horizonte

domingo, 13 de março de 2011

O futuro da teologia

Entrevista ao teólogo latino-americano José Maria Vigil

Qual é o futuro da teologia? Para onde ela vai?
Para alguns, a pergunta é inútil, porque a teologia seria sempre a mesma, uma teologia perene. E deveria ser assim também no futuro. Pelos séculos dos séculos. Ela deveria buscar, simplesmente, ser fiel à sua missão de sempre e de "custodiar fielmente o depósito da fé". Mas essa visão estática não resiste à verificação histórica. Porque, na realidade, a teologia não fez nada mais do que mudar, evoluir, constantemente, desde o seu início.

Segundo a definição anselmiana, a teologia é "fides quaerens intellectum", fé que quer compreender. "Fides", aqui, não é a fé como uma entidade abstrata, sem sujeito... Quem quer compreender são os sujeitos crentes, que querem entender aquilo em que creem. Pois bem, com a mudança dos sujeitos crentes, geração após geração, em contextos históricos que em cada tempo são diversos, a sua busca de compreensão – "quaerens intellectum" – inevitavelmente evoluiu (...).

Na última parte do século passado, as comunicações, as migrações, o turismo, a própria mundialização diversificaram enormemente as sociedades. A maior parte do globo se tornou pluricultural e plurirreligiosa. Desapareceram quase totalmente as sociedades homogêneas, monoculturais e monorreligiosas em que se podia fazer teologia no interior de uma única religião, sem compreender as perguntas que surgem das reivindicações de verdade de outras religiões.

Antes ou depois, com maior ou menor consciência, os crentes querem finalmente compreender a relação da sua própria fé com os outros credos e reinterpretar as antigas respostas herdadas à luz desse pluralismo. É a teologia das religiões (nunca na história a teologia havia se colocado a questão das outras religiões), que depois se chamou teologia do pluralismo (que se pergunta: esse pluralismo é de fato ou de direito?) e que desemboca, enfim, na teologia pluralista: uma perspectiva nova, antes inimaginável na maior parte das religiões.

Se na sociedade convivem, agora, inevitavelmente, muitas religiões (…), o crente não quer saber só da sua própria religião, mas quer saber também o que as outras dizem. A teologia responde não com a resposta única de uma só religião, mas com o leque de respostas que as diversas religiões fornecem, para que a pessoa possa se enriquecer com tudo isso. Nunca aconteceu algo semelhante na história da teologia: trata-se da teologia comparativa.

Nesse contexto inter-religioso, são muitos os crentes – mesmo que ainda representem uma exceção – que têm uma experiência religiosa plural, que vivem a sua própria experiência religiosa em mais de uma religião. Têm um duplo pertencimento ou às vezes um pertencimento múltiplo. Obviamente, são muitos mais aqueles que acreditam que isso não seja possível ou que seja errado... e fazem bem ao não buscar experimentar. Mas o fato surpreendente daqueles que vivem um pertencimento múltiplo interpela a teologia com uma outra pergunta inédita: por que não deveria ser possível uma teologia inter-religiosa, multifé? A possível teologia inter-religiosa, apoiada por alguns, desprezada por outros, está aí, mesmo que em fase de experimentação (...).

A crise da religião tradicional, que é vivida paradoxalmente junto a uma revivescência de novas formas religiosas, já impôs praticamente a distinção clara entre religião e espiritualidade. Esta última é a dimensão profunda, enquanto a religião parece pertencer mais ao âmbito das formas, como interface que o ser humano criou para expressar aquela. Essa convicção, que já se afirmou em boa parte da sociedade atual, põe novas perguntas aos crentes. Eles querem entender o que significa então a religião: se a religião é, como sempre haviam pensado, a mediação primária para a espiritualidade, o único e principal canal de comunicação com o divino, ou se a religião é, ao invés, uma interface útil enquanto sirva, mas substituível ou prescindível quando encontra melhores mediações.

Nessa situação, como dissemos, as perguntas de muitos crentes são agora, nesse sentido, pós-religião: vão além das religiões e além da religião, embora estejam mais interessadas do que nunca na espiritualidade. A resposta a perguntas inscritas nessa perspectiva contribui com a elaboração de uma teologia pós-religiosa, laica, humana, preocupada com o papel humanizante da espiritualidade, muito além das religiões.

Uma vitalidade efervescente
Olhando para trás, podemos dizer que nos últimos 100 anos descobrimos mais mudanças evolutivas na teologia do que os que foram experimentados em toda a sua história. Como dizíamos, a sua evolução se acelerou. Surpreende-nos com a sua efervescente vitalidade. Ela chegou à sua fase final? Obviamente não. Não sabemos como o seu surpreendente itinerário seguirá em frente, mas apostamos em um brilhante futuro.

Não é preciso insistir, porque é óbvio que nem toda a teologia deve passar por cada uma dessas etapas... Nem que a aparição de uma nova etapa signifique desacreditar os modelos de teologia anteriores... O conhecimento humano, as culturas e também o mundo religioso evoluem por ondas sucessivas, mediante novos paradigmas que se apresentam de improviso, de modo surpreendente, caótico, não linearmente previsto. Encontram-se, cruzam-se, chocam-se, originam ou tornam possíveis outros paradigmas e tudo contribui para fecundar mutuamente o caminho rumo a etapas superiores. Os novos paradigmas nem sempre substituem os anteriores: com maior frequência, simplesmente se somam e se fecundam mutuamente. Nesse sentido, muitas teologias podem conviver juntas. Sempre haverá teologias confessionais enquanto houver confissões no mundo religioso. Essa forma de teologia não deve ser temida, será sempre necessária no seu âmbito: as formas de teologia supraconfessionais não vêm para expeli-la ou para substituí-la, mas sim para cobrir outros espaços em que aquela não foi aceita porque nem foi compreendida, isto é, na sociedade multirreligiosa, nos meios de comunicação laicos, na universidade laica...

A maior parte das formas de teologia dos últimos tempos pode continuar, cada uma no nicho em que foi sistematizada. Mas a meu ver isso não impede que, na evolução da teologia, possa se descobrir uma direção, um sentido que indique um certo perfil previsível da teologia do futuro.

Essa teologia teria as seguintes características:
- Não será mais uma teologia que coloque muito o acento sobre o "teo", porque aumentará sempre mais o conhecimento, em todas as latitudes, de que o teísmo é um modelo de compreensão/expressão da nossa concepção da divindade, não uma descrição certa e menos ainda imprescindível da "Realidade última";
- Não será, nem com muito entusiasmo, "logia", porque nesse ponto já descobrimos em nível mundial as deficiências da unilateralidade do discurso racional que exalta o "logos" a despeito de outras dimensões mais sutis do conhecimento humano;
- Será confessional quando for útil – para o serviço teológico no interior de ministérios ou âmbitos de uma determinada religião, obviamente – mas também saberá ser, quando necessário, não confessional, ecumênica e supraconfessional, em função do público ao qual se dirige e do âmbito em que se inscreve;
- Será, em todo o caso, pluralista, isto é, superará o complexo de superioridade religiosa do qual quase todas as religiões do mundo sofreram, um complexo que as levou a se considerarem diretamente divinas, a única religião válida do mundo. Ora, diante da evidência de que todas as religiões são lâmpadas da riqueza infinita da Realidade última, perceberão que o pluralismo religioso é o que foi "querido por Deus", em vez de ser um mal a ser combatido;
- Mesmo quando for confessional, certamente deverá ser, sempre mais, uma teologia comparativa: na sociedade plural, deverá se encarregar da palavra das outras religiões (...) mais do que permanecer dentro de restritos limites autorreferenciais;
- Mais do que simplesmente comparativa, será muitas vezes inter-religiosa, interfé, intercrente, multirreligiosa, multifé... (é ainda prematuro um vocabulário definitivo). Mesmo que hoje ela pareça ser impossível para muitos, para outros ela é uma possibilidade já em curso. Não é absolutamente excepcional a experiência de dupla ou múltipla pertença religiosa, mesmo que para muitos isso seja inimaginável. Aqueles que a experimentam estão em condições de elaborar esse tipo de teologia, e já estão em curso experiências provisórias, mas promissoras;
- Se poderá ser não confessional, é óbvio que ela poderá ser "laica", não oficial, nem clerical, nem pertencente a alguma instituição religiosa: uma teologia fora da instituição, laica, civil, espiritual, humana. Quem souber abrir os olhos provavelmente descobrirá que essa teologia já está em curso e que abre caminho, muitas vezes sem esse nome. Não é uma teologia convencional, que trabalha de maneira confessional, mas sim uma teologia que pretende simplesmente "humanizar a humanidade";
- Desde os tempos da teologia da libertação, acredito que essa qualificação não é facultativa, mas essencial: não existe teologia se não for libertadora. Mas a velha forma de teologia da libertação deve ser fecundada – e já o está fazendo – com os novos paradigmas que a seguiram. Não pode continuar sendo exclusivista, como foi originariamente, não por vontade explícita, mas de maneira inconsciente. Não poderá nem ser tão antropocêntrica como foi, também involuntariamente: agora, deverá ser cosmo-biocêntrica, para humanizar a humanidade e o planeta, a partir de uma perspectiva de eco-justiça.

Podemos esperar mudanças positivas na teologia?

Fecundado por tantos paradigmas novos e por tantas experiências em curso, o futuro da teologia é promissor e sedutor para quem se deixa fascinar por essa inquietação radical do ser humano, do ser humano religioso que sempre busca entender a sua própria religião.
Sem dúvida, estamos em um tempo de mudança radical, de formas novas de teologia que não foram nem sonhadas. O futuro é de quem se arrisca apontando para essa tarefa de refundação teológica.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Desabafo de um professor de teologia

Prof. Calvani

Sou um professor de Teologia em crise. Não com minha fé ou com minhas convicções, mas com a dificuldade que eu e outros colegas enfrentamos nos últimos anos diante dos novos seminaristas enviados para as faculdades de teologia evangélica. Tenho trabalhado como Professor em Seminários Evangélicos presbiterianos, batistas, da Assembléia de Deus e interdenominacionais desde 1991 e, tristemente, observo que nunca houve safras tão fracas de vocacionados como nos últimos três anos.
No início de meu ministério docente, recordo-me que os alunos chegavam aos seminários bastante preparados biblicamente, com uma visão teológica razoavelmente ampla, com conhecimentos mínimos de história do cristianismo e com uma sede intelectual muito grande por penetrar no fascinante mundo da teologia cristã.
Ultimamente, porém, aqueles que se matriculam em Seminários refletem a pobreza e mediocridade teológica que tomaram conta de nossas igrejas evangélicas.
Sempre pergunto aos calouros a respeito de suas convicções em relação ao chamado e à vocação. Pois outro dia, um calouro saiu-se com a brilhante resposta: "não passei em nenhum vestibular e comecei a sentir que Deus impedira meu acesso à universidade a fim de que eu me dedicasse ao ministério". Trata-se do mais típico caso de "certeza da vocação" adquirida na ignorância.
E, invariavelmente, esses são os alunos que mais transpiram preguiça intelectual.A grande maioria dos novos vocacionados chega aos Seminários influenciada pelos modismos que grassam no mundo evangélico. Alguns se autodenominam "levitas". Outros, dizem que estão ali porque são vocacionados a serem "apóstolos".
Ultimamente qualquer pessoa que canta ou toca algum instrumento na igreja, se auto-denomina "levita". Tento fazê-los compreender que os levitas, na antiga aliança, não apenas cantavam e tocavam instrumentos no Templo, como também cuidavam da higiene e limpeza do altar dos sacrifícios (afinal, muito sangue era derramado várias vezes por dia), além de constituírem até mesmo uma espécie de "força policial" para manter a ordem nas celebrações. Porém, hoje em dia, para os "novos levitas" basta saber tocar três acordes e fazer algumas coreografias aeróbicas durante o louvor para se sentirem com autoridade até mesmo para mudar a ordem dos cultos.
Outros há, que se auto-intitulam "apóstolos". Dentro de alguns dias teremos também "anjos", "arcanjos", "querubins" e "serafins". No dia em que inventarem o ministério de "semi-deus" já não precisaremos mais sequer da Bíblia.
Nunca pensei que fosse escrever isso, pois as pessoas que me conhecem geralmente me chamam de "progressista". Entretanto, ultimamente, ando é muito conservador. Na verdade, "saudosista" ou "nostálgico" seriam expressões melhores.
Tenho saudades de um tempo em que havia um encadeamento lógico nos cultos evangélicos, em que os cânticos e hinos estavam distribuídos equilibradamente na ordem do culto.
Atualmente os chamados "momentos de louvor" mais se assemelham a show ensurdecedores ou de um sentimentalismo meloso.
Pior: sobrepujam em tempo e importância a centralidade da Palavra e da Ceia nas Igrejas Protestantes. Muitas pessoas vão à Igreja muito mais por causa do "louvor" do que para ouvir a Palavra que regenera, orienta e exige de nós obediência. Dias atrás, na semana da Páscoa comentei com um grupo de alunos a respeito da liturgia das "sete palavras da cruz" que seria celebrada em minha Igreja na 6a feira da paixão. Alguns manifestaram desejo de participar. Eu os avisei então que se tratava de uma liturgia que dura, em média, uma hora e meia, durante a qual não é cantado nenhum hino (pelo menos na tradição de minha Igreja - Anglicana), mas onde lemos as Escrituras, oramos e meditamos nas sete palavras pronunciadas por Cristo durante a crucificação. Ao saberem disso, um deles disse: "se não houver música, não há culto".
Creio que, em parte, isso é reflexo da cultura pop, da influência da "Geração MTV", incapaz de perceber que Deus pode ser encontrado também na contemplação, meditação e no silêncio. Percebo também que alguns colegas pastores de outras igrejas freqüentemente manifestam a sensação de sentirem-se tolhidos e pressionados pelos diversos grupos de louvor. O mercado gospel cresceu muito em nosso país e, além de enriquecer os "artistas" e insuflar seus egos, passou a determinar até mesmo a "identidade" das igrejas evangélicas. Houve tempo em que um presbiteriano ou um batista sabiam dar razão de suas crenças.
Atualmente, tudo parece estar se diluindo numa massa disforme. Trata-se da "xuxização" ("todo mundo batendo palma agora... todo mundo tá feliz ? tá feliz!") do mundo evangélico, liderada pelos "levitas" que aprisionam ideologicamente os ministros da Palavra. O apóstolo Paulo dizia que a Palavra não está aprisionada. Mas, em nossos dias, os ministros da Palavra, estão - cativos da cultura gospel.
Tenho a impressão de que isso tudo é, em parte, reflexo de um antigo problema: o relacionamento do mundo evangélico com a cultura chamada "secular". Amedrontados com as muitas opções que o "mundo" oferece, os pais preferem ter os filhos constantemente sob a mira dos olhos aos domingos, ainda que isso implique em modificar a identidade das Igrejas. E os pastores, reféns que são dos dízimos de onde retiram seus salários, rendem-se às conveniências, no estilo dos sacerdotes do Antigo Testamento.
Um aluno disse-me que, no dia em que os evangélicos tomarem o poder no Brasil acabarão com o carnaval, as "folias de rei", os cinemas, bares, danceterias etc. Assusta-me o fato de que o desenvolvimento dessa sub-cultura "gospel" torne o mundo evangélico tão guetizado que, se um dia, realmente os evangélicos tomarem o poder na sociedade, venham a desenvolver uma espécie de "Talibã evangélico". Tal como as estátuas do Buda no Afeganistão, o "Cristo Redentor" estará com os dias contados.
Esses jovens que passam o dia ouvindo rádios gospel e lendo textos de duvidosa qualidade teológica, de repente vêm nos Seminários uma grande oportunidade de ascensão profissional e buscam em massa os seminários. Nunca houve tanta afluência de jovens nos seminários como nos últimos anos.
Em um seminário em que trabalhei (de outra denominação), os colegas diziam que a Igreja, em breve teria problemas, pois o crescimento da Igreja não era proporcional ao número de jovens que todos os anos saíam dos Seminários como bacharéis em teologia, aptos para o exercício do ministério.
A preocupação dos colegas era: onde colocar todos esses novos pastores?Na minha ingenuidade, sugeri que seria uma grande oportunidade missionária: enviá-los para iniciarem novas comunidades em zonas rurais e na periferia das cidades. Foi então que um colega, bastante sábio, retrucou: "Eles não querem. Recusam-se! Querem as Igrejas grandes, já formadas e estabelecidas, sem problemas financeiros".
De fato, percebi que alguns realmente se mostravam decepcionados ao saberem que teriam que começar seu ministério em um lugar pequeno, numa comunidade pobre, fazendo cultos nos lares, cantando às vezes "à capella" e sem o apoio dos amplificadores e mesas-de-som.
Na maioria dos Seminários hoje, os alunos sabem o nome de todas as bandas gospel, mas não sabem quem foi Wesley, Lutero ou Calvino.