O mundo dá muitas voltas, e certas convicções de raiz retornam com novos matizes. A cultura da modernidade, a partir dos séculos XIV e XV, proclamou com orgulho a submissão da natureza ao ser humano. A filosofia moderna segue o mesmo caminho, ao sustentar a centralidade do homem, com a autonomia da razão científica, filosófica e subjetiva. A sociedade urbano-industrial e o progresso ilimitado pareciam um sonho sem fim. O antropocentrismo é uma tendência irreversível a se consolidar em todo o orbe. Mas algo levou a questionar tal visão: a consciência planetária. Somos filhos da Terra e responsáveis pelo seu futuro.
A contínua degradação do ecossistema, a crise da pretensão de totalidade da ciência, a crescente consciência do desenraizamento do ser humano em relação ao mundo natural e outros fatores criam condições favoráveis para a eclosão de vigoroso movimento ecológico no mundo inteiro.
A ecologia pode ser compreendida como ciência, ética e paradigma. As três dimensões se completam. Enquanto ciência, ecologia significa o estudo de como se inter-relacionam todos os seres que constituem a “comunidade de vida” em nosso planeta: os seres abióticos (água, ar, solo e energia do sol), os seres bióticos (microrganismos, plantas e animais) e o ser humano. Nascida da biologia, a ecologia ultrapassou seu campo inicial de conhecimento, ao propor estudar as relações, os contextos, e não somente determinados seres vivos em seu hábitat. Forja-se então a categoria “interdependência”: todos os seres estão em rede e as redes de matéria e energia são constitutivas na teia da vida.
A começar de seu objeto formal e do método, a ecologia postula a colaboração de muitos saberes. Somente se compreendem as relações na esfera da vida do planeta (biosfera) recorrendo simultaneamente a várias ciências, como biologia, física, química, geografia etc.... Fator semelhante acontece quando se estuda a ecologia humana, ao somar abordagens multidisciplinares da psicologia, da sociologia, da geografia humana, da economia, da história etc.
A abordagem científica da ecologia aproxima-se da teoria da complexidade de E. Morin, por reconhecer a incerteza e a incompletude como parte do conhecimento, que se mantém aberto para tecer novos fios e perceber relações ainda não compreendidas. A ecologia se liga também à holografia e a holística, enquanto percebe que em cada ser, biótico ou abiótico, há uma parte do cosmos, e que o todo é maior do que a soma das partes. A ecologia também se tornou um viés que influencia várias ciências teóricas e aplicadas, pois seu interesse se dirige à sustentabilidade, ou seja, a continuidade da vida no presente e no futuro do planeta. Daí surgem, por exemplo, a arquitetura e construção sustentáveis, a engenharia ambiental, o ecodesign na concepção de produtos, a gestão ambiental...
Ecologia, enquanto ética, diz respeito ao despertar da consciência (ecopercepção) e a empreender ações que tenham em vista a sustentabilidade. Inicia-se com a percepção de que a atual forma de o ser humano se relacionar com o ecossistema está equivocada e levará a humanidade e nossa “casa comum” a desastre sem precedentes. As mudanças climáticas fazem perceber, de forma inequívoca, que a atuação irresponsável do ser humano em relação ao ecossistema tem consequências graves e simultâneas, tais como alteração do ciclo das estações, perda da biodiversidade, contaminação (do solo, do ar e da água), perdas econômicas na agricultura, aumento de doenças respiratórias, custos econômicos não contabilizados e externalizados, etc.
A ética ecológica articula, de forma nova, a questão do indivíduo, do grupo, da instituição e das estruturas sociais e econômicas. Ela rejeita a exclusividade de fatores e a oposição entre subjetividade e coletividade. Propugna que a sociedade ecologicamente sustentável é possível quando se somam, de forma interdependente, atitudes individuais, ações familiares e coletivas, gestão institucional, adoção de políticas locais e nacionais, além de acordos internacionais em forma de protocolos vinculantes.
Assim, sustentabilidade postula também novo ethos humano e sociopolítico. Implica mudança de hábitos pessoais e comunitários de consumo e descarte. Interfere no processo de extração, produção, distribuição, consumo, descarte (ou reciclagem) dos bens e nos serviços a eles associados. Compreende por isso o triple botton line: econômico, social e ambiental. Transforma-se numa das grandes causas da humanidade, no presente e no futuro. Exige que o ser humano recubra o olhar de encantamento, percebendo que os outros seres não são “coisas”, que tome consciência de seu impacto sobre o planeta, da “pegada ecológica”, e assuma novas atitudes.
O paradigma ecológico, por sua vez, consiste na crítica e na superação do antropocentrismo moderno. O ser humano pode até se compreender como “centro consciente do universo conhecido”, mas ele nunca está sozinho. A espécie humana é fruto de longuíssimo processo de evolução da matéria. Somos filhos da Terra e parte da Terra. Por isso, a consciência planetária implica ética planetária: é preciso cuidar da Terra. Assim, ciência e ética se fundem, sem perder a especificidade, num modelo de compreensão do ser humano que se percebe como parte do meio ambiente e em contínua relação de interdependência com ele.
Qual a originalidade da ecoteologia, neste contexto? Brevemente:
— Trata-se de reflexão que resgata a unidade da experiência cristã e de sua formulação, apresentando em seu discurso a relação entre criação, história, encarnação, morte e ressurreição de Jesus, e o início da nova criação.
— Reelabora a teologia da criação na perspectiva da interdependência, mostrando que o ser humano, nos relatos bíblicos, é feito por Deus do barro da terra (consciência ecoplanetária), para cuidar do jardim, assim como para servir-se das outras criaturas, exercitando o senhorio como Deus é Senhor. Há relação estreita entre criação e salvação, e todos os seres estão nelas implicados.
— Explicita e fundamenta a ética do cuidado com o mundo, em ligação estreita com a moral social, ampliando sua abrangência.
— Propõe-se a superar a fragmentação das disciplinas teológicas e, na linha da teoria da complexidade, empenha-se no diálogo efetivo com as “ciências da natureza”.
— Estimula a espiritualidade ecológica, que associa no louvor e no serviço todos os seres à obra criadora, redentora e santificadora da Trindade.
— Estabelece teias de mútua aprendizagem com a teologia da libertação (dimensão social da fé), a teologia feminista, a teologia afro-ameríndia e a teologia das religiões.
A ecoteologia, que apenas se delineia no momento, contribui para superar visões equivocadas ou restritivas da relação do ser humano com o ambiente, assim como de sua própria autocompreensão. Ao se rebelar contra o racionalismo moderno e sua sede ilimitada de tudo explicar e esquadrinhar, o ser humano pode resvalar em posturas irracionais. Confunde-se reencantamento com ingenuidade ou espírito mágico. Exemplos palpáveis se encontram nos discursos de certos grupos religiosos sobre o sentido da doença, do mal, da injustiça social e do destino. Contrariamente ao orgulho antropocêntrico, que tudo submete ao ser humano, proliferam as crenças numa infinidade de determinismos cósmicos sobre o devir individual e coletivo. Além disso, a categoria “energia”, retirada da física quântica, seria uma panaceia que tudo justifica, sem nada explicar.
A holística pode servir à construção do cristianismo atualizado, coerente e cheio de vida; boa-nova para homens e mulheres desesperançados em busca de um fio condutor, sedentos por nova forma de enfocar a posição do ser humano em relação ao cosmos. O fato de comungar com nova mentalidade, compartilhada por grupos não cristãos ou pós-cristãos, não implica aceitação incondicional de todos os componentes. Existem na holística “sinais dos tempos” e sementes do Verbo que pedem reconhecimento e valorização. Há que evitar, no entanto, um pretenso neouniversalismo que a tudo dilui e relativiza, esvaziando o conteúdo da proposta de Jesus Cristo, a novidade radical do Evangelho. Diferentemente do panteísmo, que abole as fronteiras entre o humano e o divino, a ecoteologia propõe o panenteísmo. Compreende que todos os seres estão em Deus e para ele se destinam, pois foram criados pelo Pai, por meio da Palavra (o filho), no Espírito. Este sustenta, renova e leva à consumação a criação.
Em suma, a ecoteologia contribui para ressituar o ser humano à luz da fé cristã, no momento atual de crise global, e contribui para consolidar a consciência planetária: somos filhos da Terra e responsáveis por seu futuro.
A ecoteologia tem diante de si duplo compromisso programático. O primeiro consiste em reenfocar temas e disciplinas teológicas, considerando a participação de todos os seres no projeto de redenção e a premência do compromisso ético com a “salvaguarda da criação”. O segundo compreende a adoção de novo paradigma, bioantropocêntrico, que influencia a epistemologia teológica e propugna a unidade entre o conhecimento intelectual e o experiencial-místico.
A ecoteologia se encontra em situação semelhante àquela vivida, faz alguns anos, pela teologia da libertação, quando adotou conceitos e categorias novos, e deve testar a pertinência, a legitimidade e a adequação deles. A dessemelhança reside no acento: não somente na práxis transformadora de cunho social, mas na também na postura ética e na mística que animam a existência humana na relação com a biosfera. Enquanto prática libertadora, a ecoteologia e sua vertente ética ampliam a percepção da prática libertadora, estimulando o compromisso socioambiental dos cristãos.
Afonso Murad
Fonte: Introdução a Teologia - Loyola, 2011, cap. 8.
terça-feira, 17 de maio de 2011
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