A teologia é hermenêutica da fé, pois interpreta e organiza os dados revelados, vividos e compreendidos na/pela comunidade eclesial, em diferentes contextos socioculturais e históricos. Caso não exerça essa missão, as formulações de fé se tornam anacrônicas, reduzindo-se, com o tempo, à recitação de fórmulas de pouca inteligibilidade. A hermenêutica faz parte intrínseca do próprio conceito e da identidade da teologia.
A tarefa hermenêutica sempre existiu, mas a consciência explícita de sua utilização soa relativamente nova. No esquema mental vigente até o advento da modernidade, pensava-se que o ato de conhecer visava a alcançar de forma definitiva o sentido único do texto. A verdade já estava fixada. Bastava ter acesso a ela, desobstruindo o olhar. Daí a concepção clássica de que a verdade é a adequação da mente ao objeto, à realidade. Nesse contexto, até a palavra “interpretação” ecoava estranha, desnecessária. Em visão estática, a revelação divina se entende como conjunto de verdades eternas que possuem formulação definitiva, emanadas diretamente da Bíblia e da doutrina fixada pelas Igrejas cristãs. Como frequentemente não se leva em consideração as coordenadas culturais de tempo e espaço na formulação dos dados da fé, não se pensa em reformulá-los quando estas coordenadas se modificam. Interpretam-se as mudanças históricas, na organização da sociedade ou no pensamento como desvios da ordem cristã. Não constituem então fator coadjuvante na elaboração teológica. Nesta concepção, existe uma “teologia perene” que desvela, de forma inequívoca, as questões centrais da fé. As formulações necessitam somente ser entendidas, adaptadas, aplicadas, mas não reelaboradas.
Vários fatores levam a perceber a necessidade da hermenêutica, tais como a descoberta da historicidade, a valorização das culturas, o reconhecimento do sujeito cognoscente e da realidade social.
a. Historicidade e subjetividade
A consciência da historicidade e a compreensão de como acontece o processo do conhecimento levam a perceber que a verdade não preexiste inteiramente de modo objetivo. Assim, já não se considera o cristianismo como depósito ou sistema objetivo de verdades prévias à realidade histórica. A verdade se experimenta como busca, dependente da historicidade concreta, fundamentalmente processual e contextualizada, sem deixar de ter valor universal; do contrário só existe como abstração conceitual.
A descoberta do valor das culturas e dos condicionamentos na interpretação da fé confere à tarefa hermenêutica singular importância. O cristianismo atual resulta de vários processos de inculturação. Nascido no meio oriental semita mediterrâneo, expande-se para o Ocidente. Faz a passagem do horizonte judaico para o helênico. Já nos inícios, realiza reinterpretações múltiplas, como mostram os escritos das escolas de Alexandria, Antioquia e Capadócia. Na passagem para a Idade Média, assimila padrões, valores e comportamentos de vários povos. Posteriormente, incorpora a filosofia aristotélico-tomista em seu pensar. No surgir das Igrejas da Reforma, incidem importantes fatores culturais do advento da modernidade, como a valorização da subjetividade e a relativização da tradição. Assim, no correr de sua longa história, o cristianismo assumiu, conscientemente ou não, a influência de muitas formas de pensar e de agir. Configurou-se com paradigmas e modelos de compreensão (cf. capítulo 7).
Hoje, quando se reconhecem os valores das culturas autóctones e se aceitam os elementos positivos da pluralidade na sociedade moderna, as Igrejas põem-se a reinterpretar os dados de fé para novas situações e novos contextos. Não se renuncia com isso ao núcleo do cristianismo para fazê-lo palatável e “pronto para o consumo” no mercado religioso. Ao contrário, busca-se fidelidade ao Evangelho, mantendo seu caráter de “Boa-nova” compreensível, significativa e interpeladora (cf. capítulo 6).
Qualquer ato de conhecer passa necessariamente pela pessoa, situada em determinada comunidade linguística e cultural. Ao interpretar, o sujeito cognoscente imprime sua maneira de ser. O conhecimento não é totalmente objetivo. Sujeito e objeto do conhecimento interagem. Quando alguém lê a realidade, interpreta-se a si e posiciona-se diante dela. O teólogo ou qualquer outro cristão possui uma “pré-compreensão” (em alemão Vorverständnis) derivada do somatório de experiências vividas, refletidas e assimiladas. A pré-compreensão exerce efeito seletivo sobre o conhecimento. Atua qual filtro, ao deixar passar alguns elementos e reter outros. Dirige a luz para uns aspectos, ficando outros na sombra.
Cabe à teologia tanto levar em conta a participação ativa do sujeito que conhece, faz, lê e ouve teologia como evitar que a elaboração do discurso teológico se reduza à mera produção subjetiva ou corporativa. A teologia descortina a pré-compreensão dos cristãos e das Igrejas e, à luz da revelação e dos sinais dos tempos, amplia o horizonte de compreensão, visando ao diálogo salvífico de Deus com a humanidade. A reflexão teológica contemporânea defronta-se com a pergunta de fundo: “Que sentido tem, para o homem, a mulher de hoje, determinado tema? Em particular, que aspectos de sua existência a fé ilumina?”
b. Dimensão social
O espaço vital da pessoa transcende a subjetividade. A existência individual, de valor inegável e irredutível, constrói-se em sociedade. Na América Latina e no Caribe, vários aspectos caracterizam a dimensão social da existência humana. Entre eles, citam-se: o escândalo ético da concentração de riqueza, gerando situações extremas de pobreza; a pluralidade étnica de nossos povos, com matrizes europeias, indígenas e africanas, a ponto de gerar culturas nacionais com forte acento mestiço; a inserção dependente no mercado internacional, exportando commodities e produtos de baixo valor agregado e importando tecnologia e produtos de alto valor agregado; a exploração irracional dos recursos naturais, com a destruição dos biomas e a perda de biodiversidade; a crescente consciência ambiental nas pessoas e na sociedade civil; os processos acelerados de urbanização, levando a mudanças significativas na configuração demográfica e nas culturas; a degradação da política, contaminada pela corrupção e pela impunidade; a eclosão de novos movimentos e tribos urbanos entre os jovens; o crescimento do voluntariado; o surgimento de novos movimentos sociais e o declínio de outros; a luta dos governos contra o narcotráfico; o desenvolvimento de religiosidade intensa, mágica, massiva e individualista, que convive com o lento crescimento do indiferentismo religioso. Esta lista ilustrativa poderia ser ampliada ou modificada, a partir de diferentes critérios de leitura do presente cenário.
A fé cristã tem irrenunciável dimensão social, que extrapola a soma de indivíduos isolados ou de pequenas comunidades. A Boa-nova de Jesus, atualizada pela comunidade de seus seguidores, não se dirige somente a cada pessoa, mas também pronuncia palavra interpeladora à realidade estrutural do ser humano em sociedade, que habita a Terra. Isto implica levar em conta as múltiplas dimensões (social, cultural, econômica e ecológica) que constituem o humano. E isso faz parte da tarefa hermenêutica da fé. Não se trata somente de interpretar a Bíblia e a doutrina eclesial para responder aos apelos das subjetividades, mas também de compreender à luz da fé as grandes questões coletivas que hoje afligem e mobilizam a humanidade e colaborar para edificar o mundo de acordo com a vontade de Deus.
O perverso processo de concentração de renda, que ainda persiste em nosso continente, não deriva de calamidades imprevisíveis ou de carência de recursos naturais, mas de mecanismos estruturados. Sustenta-se numa ideologia (forma de pensar parcial que dissemina os interesses da classe dominante) que se expressa na religião, nos hábitos sociais, na escola e na mídia. Da forma análoga, a crescente destruição dos ecossistemas é fruto de visão equivocada do progresso e do desenvolvimento infinitos, que gera enorme passivo ambiental para as futuras gerações. Nesse contexto, a hermenêutica teológica assume função desideologizadora. Ajuda a remover as inferências da ideologia dominante, que entra no discurso cristão. Realiza-se a “libertação da teologia”, tarefa preconizada por J. L. Segundo. Então, a fé estimula práticas sociais justas, fraternas e sustentáveis.
A teologia latino-americana tematizou de forma ímpar a relação entre reflexão sistemática e óptica interpretativa com o axioma: O lugar social condiciona o lugar hermenêutico. O teólogo, encarnado em situações humanas diversas, ouve os clamores que surgem daí, sente a interpelação ética, vê o rosto de Deus nas vitórias do bem e no “reverso da história”. Levanta perguntas em que seu colega, encastelado no ambiente acadêmico, jamais pensou. Encontra sinais de Deus onde parecia não haver nada. Junto com outras pessoas, busca soluções humanizadoras, pois problemas reais não se solucionam apenas na academia ou na realidade virtual.
A teologia recupera assim a dimensão metacientífica. O impulso da atuação teológica não brota somente do desejo de conhecer as realidades divinas, mas também do empenho em viver o novo mandamento de Jesus: a caridade-solidariedade. J. L. Segundo denomina este fator “momento pré-teológico” do círculo hermenêutico da fé. O conhecimento começa com a indignação ética, com o desejo de fazer-se irmão/irmã, de compartilhar história comum. Por vezes, tal sentimento se torna visceral. O pathos, a paixão solidária impulsionam o saber.
Em consonância com a teoria da complexidade, a hermenêutica da fé conjuga fatores que antes se consideravam incompatíveis: olhar apaixonado e distanciamento científico, envolvimento em realidades humanas concretas e elaboração crítica, aprender da Bíblia e da tradição e também com os “sinais dos tempos” da atualidade. No dizer de Paulo Freire, exercita-se a “razão encharcada de emoção”, contextualizada e histórica.
Afonso Murad
Livro: Introdução à Teologia, cap 8, Ed. Loyola, 2011.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
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