quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Teologia da Libertação: autocrítica e perspectivas

Este artigo de J.B. Libânio, escrito originalmente para um livro e disponibilizado no seu site, apresenta de forma sintética e profunda a autocrítica da Teologia da Libertação e algumas perspectivas para a futuro.
A TdL diante de tantas críticas, da crescente resistência do magistério eclesiástico, do fracasso dos movimentos alimentados por ela (Revolução Sandinista, lutas populares), da queda do Socialismo real, da cultura pós-moderna com o surto religioso e da extrema subjetividade atual, do novo paradigma científico emergente empreendeu sua autocrítica. Revendo o seu discurso, reconhece-lhe certo pessimismo e negativismo sobre o mundo presente e sobre o ser humano, lido sob a ótica da opressão. Discurso monocórdico e positivista que pensa dar conta cabal da realidade, atropelando-lhe a complexidade, hoje amplamente desvendada pelas ciências sociais, pelas novas biociências, pelas ciências cognitivas e do comportamento humano (etologia), pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Ao mesmo tempo, era uma teologia idealista, virtual, que imaginava ser realidade os seus desejos como a Igreja dos pobres, o sujeito histórico popular, o pendor natural e ético do ser humano para a solidariedade.

Uma linguagem dualista a marcou, visualizando um grande inimigo – o capitalismo - a ser combatido à custa de sacrifícios e de um compromisso, que descuidaram a dimensão lúdica e prazerosa da vida. Isto lhe tirou o encanto e prazer. Ela necessita tornar-se uma teologia humanamente saudável. A TdL inicial tinha grandes vazios: “a corporeidade, o prazer, o “saber viver”, o “estar bem com a vida”, o direito de consumir bens e serviços variados e de qualidade, a beleza, a imersão em imaginários esperançadores, a autoestima, o incentivo a aspirações e à iniciativa, o embalo da paixão, etc. “ (Assmann, 2000: 126). A revisão tem consistido mais na ampliação de seus horizontes do que no refazimento de seu método ou princípios fundamentais por estar consciente de que marcou significativamente o universo teológico, a vida da Igreja e da Sociedade para além da AL como primeira teologia original desde a periferia. Sabe-se atual enquanto houver pobreza e injustiça social e cristãos que queiram lutar contra elas a partir de sua fé. Foi presença questionadora para militantes e intelectuais que rejeitavam a fé cristã por causa de sua vinculação histórica com posições ideologicamente conservadoras.

Irrenunciáveis são seu método, sua opção fundante pela libertação dos pobres, a articulação fé e vida, Revelação e realidade social, teoria e práxis, sua vinculação com as CEBs. Percebeu que tem de ampliar a gama dos oprimidos para além da pobreza material incluindo a etnia, o gênero, a ecologia, a religião. Para tal, exige-se uma reformulação das mediações socioanalíticas, ao inserir nelas a antropologia, a etnologia, a psicologia nas suas diversas formas. Reconhece sua carência no campo da pneumatologia, tanto na sua articulação com a pessoa histórica de Jesus, quanto com a eclesiologia. A dimensão da subjetividade e da espiritualidade fora negligenciada. Por distanciar-se do culturalismo e por prender-se demasiado às estruturas socioeconômicas esposara uma visão estreita da cultura. Percebe a necessidade de desenvolver uma confrontação com a cultura, a ética e a religião. Descobre a possibilidade de alianças com movimentos sociais alternativos, regionais e mundiais, em torno desses três campos, valorizando uma presença na sociedade civil em vez de fechar-se exclusivamente numa luta no espaço da sociedade política, do Estado.

Uma visão preconceituosa da religião popular foi já desde bom tempo confessada e corrigida. Ela não cultivou uma teologia do cotidiano dos pobres no campo religioso ou secular, onde há muito espaço para sua humanização e pequenas libertações. O pobre é também realidade de inspiração e esperança pela sua fé, valores humanos e não só de indignação contra a situação a que foi submetido. Desafia a TdL a nova situação religiosa criada pelos grupos evangélicos neopentecostais. Os pobres mais pobres não freqüentam as CEBs, mas essas igrejas. Elas oferecem respostas às necessidades imediatas do povo pobre. Prometem-lhe para logo a cura divina de seus males físicos e psíquicos, a libertação do demônio (exorcismo), a prosperidade material, o alívio, o consolo e bem-estar espiritual, a dignidade humana pela recuperação dos vícios, experiências de transe e dons carismáticos sob a liderança autoritária do pastor. Seduzem o povo. Falam a um inconsciente povoado de símbolos religiosos tradicionais e afroameríndios, ressemantizando-os. Fazem o oposto das CEBs que o conscientizavam para a luta num horizonte utópico. Dão uma importância ao corpo de cada pessoa, sua saúde, o que a TdL não fez. Alienam as pessoas da consciência política e social para colocar unicamente na fé a solução de seus problemas a curto prazo. O dízimo-sacrifício representa a maneira “compensatória” de obter-se a bênção de Deus. O discurso libertário da TdL necessita ser repensado à luz desse fato de proporções gigantescas, entendendo, recuperando e interpretando na perspectiva libertadora os símbolos religiosos do povo.

Há uma pós-modernidade popular que interpela a TdL. O povo desconfia das “grandes narrativas” libertárias sociais que nada de bem lhe trouxeram. Percebe que os progressos da razão não são para ele. Experimenta antes o reverso da história, daí sua abertura a discursos espiritualistas com soluções imediatas, onde se misturam elementos da pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade. A TdL necessita ter a sensibilidade de perceber no povo essa imbricação de horizontes culturais e falar-lhe em termos de fé. A sociedade e a cultura oferecem enorme pluralidade de práticas sociais possíveis, de valores, de perspectivas. No horizonte de suas opções fundamentais é chamada a ajudar o povo a discernir, renunciando um monolitismo de projeto.

Desafia-lhe saber situar-se entre a utopia e a realidade, sem cair no engodo da capitulação diante do neoliberalismo globalizado nem do utopismo idealista. Em termos eclesiais significa navegar contra as correntezas espiritualistas alienantes, o conservadorismo intraeclesial, um catolicismo de marketing mediático. Ontem desafiava a TdL pensar a fé numa situação de pobreza, mantida pela violência dos regimes militares; hoje a pobreza é pior, mas mantida pela ilusão das promessas neoliberais e das igrejas neopentecostais.
Texto: J.B. Libânio
Pintura: Frei Anderson msc

4 comentários:

  1. Para Clodovis Boff, a construção teológica passa por três momentos: (1) O momento positivo, que corresponde à escuta da fé (hermenêutica), (2) o momento especulativo, que consiste na explicação da fé (teoria) e (3) o momento prático, que busca atualizar ou projetar a fé na vida (prática). Assim, toda teologia se faz a partir de uma perspectiva, dentro de uma situação histórica. Nenhuma teologia é universal e perene, igualmente válida em todos os lugares e todos os tempos. Toda teologia é contextual, carente de reformulações à medida que novos desafios surgem com o intuito de tornar claro e viável o projeto de Deus para os seres humanos. A crítica de J.B. Libanio é legítima e necessária porque provoca a TdL repensar, de forma atual e frente aos desafios da pós-modernidade, a sua proposta.

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  2. Acredito que o texto de Libânio possa ser resumido com a palavra “ampliação”. A TdL é convidada a ampliar seus horizontes, pois o novo cenário político, social, econômico e religioso pós-moderno, bem como as reflexões em torno da etnia, gênero, ecologia, religião etc, marcadas, sobretudo, pelas teologias Feminista, Negra, Ecológica (entre outras), interpelam a TdL a ampliar seus horizontes e sua gama de reflexão e práxis. Esta ampliação de horizontes não significa renúncia aos princípios e conquistas já realizadas, mas a sabedoria de acrescentar novas preocupações e novas práticas.

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  3. A TdL diz respeito a uma teologia que seja libertadora em sua práxis. Ora, toda teologia deve, ou ao menos deveria ser, libertadora, incentivo que leve o crente em Deus a uma prática coerente do que o mestre Jesus ensina. Neste sentido, todo o mundo, com seus respectivos elementos, clama por ser liberto. Seriamos ingênuos se pensássemos que o tempo da teologia da libertação já passou. Ao contrário, ela continua aí, e necessita de homens corajosos para continuar despertando o senso crítico sobre a realidade e sua práxis: se está de acordo com o projeto de Deus, e neste sentido a minha atitude é de libertação, ou se continua uma realidade alienada e alienante com minhas atitudes. Desta forma, compreendemos que a teologia não se esgota e está sempre à procura de indagar o novo que se aproxima, os desafios que desabrocham. Sua contribuição para a vivência de uma fé consistente diante dos novos contextos se torna essencial para a vida humana em Deus.

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  4. A verdadeira libertação que se pode tirar do evangelho politicamente falando seria: Sistema Primitivo comunal + Anarquismo social = sociedade perfeita; igual a de nossos irmãos índios, que os jesuítas assim o fizeram e que a própria igreja os dizimou!

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