A REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO HUMANITAS DA UNISINOS (IHU), PUBLICOU UMA ENTREVISTA COM AFONSO MURAD E PAULO ROBERTO GOMES, SOBRE O LIVRO : “A CASA DA TEOLOGIA”. CONFIRA!
IHU On-Line - Por que "A casa da Teologia" é uma introdução ecumênica à ciência da fé?
Paulo Roberto Gomes - O livro "A Casa da Teologia" é uma obra ecumênica pelo fato de ter sido escrita por dois católicos com experiências na linha do Ecumenismo (Afonso Murad e Paulo Roberto) e por contar com a contribuição de uma teóloga batista (Súsie Ribeiro) com experiências ecumênicas também. Desde o princípio, procuramos discutir todos os capítulos e cuidar da linguagem para que contemplasse católicos, ortodoxos, protestantes históricos e pentecostais. O capítulo sobre a história da Teologia Católica, Ortodoxa e Evangélica demonstra esta preocupação. O pastor Geraldo Cruz da Silva contribuiu muito com suas observações na parte histórica. Todo o material escrito era cuidadosamente lido por cada um de nós, corrigido e debatido em grupo para tornar o texto mais fluente e rico. Tivemos a oportunidade de submetê-lo à leitura de outros teólogos e aplicá-lo em sala de aula. As observações desses teólogos e alunos enriqueceram ainda mais a nossa obra.
Afonso Murad - Para nós (Murad, Paulo Roberto e Susie) escrever este livro foi uma tarefa árdua e saborosa. Eu já havia elaborado um outro livro de Introdução à Teologia (Editora Loyola) com meu mestre, João Batista Libânio. Esta primeira obra está na quarta edição, e tem servido a muitos professores e alunos de Teologia no Brasil. Então, pensei em atingir outro público: os leigos e leigas que frequentam os cursos de Iniciação à Teologia, em diversas modalidades. Na primeira conversa com Paulo Roberto, quisemos estender este horizonte para as Igrejas cristãs, favorecendo uma compreensão da Teologia para além dos estreitos limites confessionais. Então convidamos Susie, teóloga batista, que havia sido minha aluna. Susie tem uma boa experiência de trabalhar em Faculdade de Teologia Evangélica, integrando a perspectiva das várias Igrejas. No trajeto de escrever e corrigir o livro, recebemos a contribuição de estudantes e professores de algumas Igrejas cristãs. Isso nos enriqueceu muito. Foi uma aprendizagem enorme! E, ao final, temos uma obra ampla de teologia cristã, em linguagem acessível, que suscita diálogo.
IHU On-Line - Em que aspectos essa obra traz uma abertura ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso?
Paulo Roberto Gomes - Ao abordarmos a pluralidade de teologias como: feminista, mulherista, negra, africana etc., tivemos a preocupação de falar do diálogo inter-religioso e da teologia das Religiões como necessárias para quem quer começar a estudar a Ciência da Fé. Como se trata de uma obra introdutória, não pudemos nos alongar muito. Tratamos as teologias de todas as Igrejas (luteranas, calvinistas, batistas, metodistas, pentecostais) com muito respeito, mostrando suas concepções a respeito da riqueza do Cristianismo. A obra tem a edição das Paulinas com a coedição da Sinodal dos luteranos. Gostaríamos muito que fosse um serviço às diversas Igrejas, abrindo perspectivas de sair de uma concepção fundamentalista para um dialogo mútuo e enriquecedor para todos.
Afonso Murad - Em vários aspectos. Em primeiro lugar, porque ela foi elaborada com os olhares de diferentes Igrejas. Além disso, contemplamos assuntos que normalmente não se encontram em outros livros. Por exemplo: raramente um livro de introdução à teologia católica contempla a história da teologia protestante. Há uma igual dificuldade nos livros de introdução, escritos por evangélicos e pentecostais, de apresentar o tema do método teológico, e de refletir sobre a utilização de outros saberes na elaboração da ciência da fé. E existe ainda a questão espinhosa da relação entre Bíblia e Tradição. Resolvemos abordar estes temas de forma aberta e respeitosa, mostrando as diferenças e os possíveis pontos em comum. Um dos grandes problemas para o diálogo ecumênico e inter-religioso é que não se conhece a visão do outro a partir do seu ponto de vista. Então, este livro se presta a informar e refletir, sem ter a pretensão de doutrinar ninguém. Assume uma postura clara: a teologia cristã é um saber apaixonado, que parte da experiência da fé, vivida em comunidade. Mas esta paixão é lúcida. Quer compreender em que (ou em Quem) crê, e como se dá este processo. Por isso, necessita pensar, com instrumentais teóricos adequados. A identidade não se perde em contato com o outro, mas se enriquece. Numa sociedade plural, a teologia também necessita ser plural.
IHU On-Line - O que a metáfora da casa revela sobre a Teologia em nossos dias?
Paulo Roberto Gomes - Escolhemos a metáfora da casa para tornar mais leve a leitura e pelo fato da casa ser um lugar do convívio, da intimidade e do cultivo do relacionamento. Nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, a casa é um lugar teológico de grande relevância na aprendizagem com o mestre, na convivência e no se tornar discípulo do Reino. A metáfora da Casa revela que nossa teologia deve ser hoje mais saborosa, construída nas diversas relações entre Igrejas, mulheres e homens, religiões, entre o público e o privado, um diálogo respeitoso com os mais variados interlocutores, procurando dar respostas ainda que provisórias para o serviço do Povo de Deus.
Afonso Murad - A metáfora da casa nasceu da tentativa de apresentar de uma forma poética os vários assuntos que compõem uma Iniciação à Teologia, em perspectiva ecumênica. Visitar a casa de um amigo é lentamente penetrar na sua intimidade, partilhar de algo que lhe é próprio. Assim acontece com os diversos capítulos do nosso livro. O leitor, de forma gradual, vai entrando no mundo da teologia. Chega na varanda, onde se descortinam as expectativas e desejos dos estudantes. Entra na sala de visita e começa a estabelecer relação com o saber teológico. Passa pelos corredores da história, e vai à cozinha, o lugar familiar. Visitando diferentes cômodos da “Casa da Teologia”, o leitor se sente parte dela. Por fim, a teologia reconhece que não basta a si própria. É necessário ouvir e dialogar com as grandes questões da humanidade: sociais, étnicas, culturais e ecológicas. Por isso, a metáfora nos leva ao capítulo final: “A casa e a cidade”. Por fim, nós cremos que a teologia é uma casa em construção. Então, criamos o blog: http://www.casadateologia.blogspot.com/, para apresentar bibliografia recente, novos artigos e até pequenos vídeos, além de favorecer a interlocução com o(a) estudante de Teologia. A “casa da teologia” é nossa casa. Bem-vindo!
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_destaques_semana&Itemid=24&task=detalhes&idnot=2033&idedit=15
terça-feira, 30 de março de 2010
Filosofia e Teologia em Ignacio Ellacuría
Elismar Alves dos Santos - Doutorando em Teologia pela FAJE, Belo Horizonte
Ignacio Ellacuría reflete sobre a necessidade de sistematizar uma filosofia a partir da realidade da América Latina. Apresentaremos aqui os principais traços de sua filosofia, voltada para a realidade libertadora, tendo como referencial teórico os artigos: “Funcion Libertadora de la Filosofia”,
“El objeto de la filosofia” e “Filosofia de la realidad histórica”. Seus escritos visam contribuir na formação da consciência social dos cristãos da América Latina, para a qual trabalhou incansavelmente. O autor foi assassinado por um grupo paramilitar de El Salvador, em 1990.
O caráter libertador da Filosofia
O teólogo e filósofo Ignácio Ellacuría desenvolve uma reflexão atual sobre o papel da filosofia nas relações humanas em vista da promoção da dignidade do ser humano. Trata-se de uma filosofia concebida como busca pela verdade em sintonia com a liberdade. Lembrando, porém, que os escritos de Ignácio Ellacuría, tanto na área da teologia como da filosofia refletem acerca da situação da opressão e da desigualdade social na América Latina. O autor lembra que na América Latina existe uma Teologia própria conhecida como Teologia da Libertação. Porém, carece, ainda, de uma Filosofia com o “rosto”da América Latina, enquanto originada da sua própria realidade histórica. Uma razão pela não existência ainda de um método filosófico de origem Latino Americano, na avaliação de alguns estudiosos, pode ser este: “devido ser um continente nacionalista, indigenista, autóctonas, etc”. (Ellacuría, 1985, p. 46).
A proposta filosófica de Ellacuría tem como meta abordar a filosofia na condição de meio que proporciona a liberdade através da experiência da cultura e das estruturas sociais, dentro da realidade da pessoa humana, onde ela precisa realizar-se em espírito de liberdade. A liberdade é tema importante na filosofia desse pensador. Assim, ele explica que a filosofia desde os pré-socráticos, procura refletir sobre a liberdade. Porém, não se trata de uma liberdade abstrata, mas sim, prática na história do ser humano.
Tendo subjacente o artigo de 1985, “Funcion Liberadora de la Filosofia,” I. Ellacuría parte de uma constatação: a América Latina por ter vivido um contexto de opressão não foi possível criar uma tradição filosófica. Ele considera a filosofia responsável por conceder “uma capacidade crítica ”ao ser humano diante das ideologias. Ellacuría recorda que a filosofia é uma poderosa “arma” no combate a opressão social, pois leva o indivíduo a criar consciência do seu papel enquanto agente de transformação. Assim, recorda que a filosofia se distingue historicamente, por sua criticidade.
A filosofia busca, entretanto, os fundamentos racionais que o indivíduo necessita para posicionar-se diante de seu contexto histórico. Com isso, “a função libertadora da filosofia é exigida então, por sua própria condição de criticidade e fundamentação e por sua vez, obriga ao fazer filosófico buscar uma fundamentação crítica”. (Ellacuría,1985, p. 51). A reflexão filosófica de Ellacuría visa chamar a atenção para a importância da emancipação do sujeito. O teólogo lembra que na década de oitenta, dever-se-ia pensar nos processos sócio-econômicos que a sociedade estava passando, de opressão pelos regimes totalitários, como pela gritante desigualdade social nos países classificados como “terceiro mundo”. Nessa perspectiva ele pontua que se deveria falar da “autodeterminação pessoal do sujeito livre e consciente”. (Ellacuría, 1985, p.53).
A filosofia deve ser utilizada como referencial teórico de enfrentamento diante da realidade de desigualdade social, pois ilumina, interpreta e transforma a pessoa humana. Está subjacente ao seu pensamento, a capacidade da filosofia enquanto meio que proporciona a práxis. Em outras palavras: “O homem tem uma forma peculiar de enfrentar-se com a realidade que é a habilidade intelectiva, que independentemente de sua origem, natureza e condicionamentos, estruturais, têm sua peculiaridade que deve ser estudada não só para conhecer o que é o homem, mas para anteriormente poder fazer um uso crítico de sua própria inteligência.” (Ellacuría,1985, p.54).
Entretanto, adverte que esta possibilidade da filosofia em proporcionar a liberdade através da inteligência serve tanto para libertar o homem como também para oprimi-lo. Se a filosofia faz parte da condição existencial do ser humano, então ela contempla a realidade social do indivíduo. Lembrando que “homem, sociedade e história são três realidades vinculadas entre si, porém cada uma tem sua peculiaridade”. (Ellacuría, 1985, p.54). A temática da história na filosofia encontra espaço fecundo em suas reflexões, pois ele propõe uma filosofia da realidade histórica, como ponto nefrálgico de seu método filosófico. Esse assunto será evidenciado no segundo artigo do autor, em relação ao objeto da filosofia. A filosofia é uma busca transcendental, porém vinculada às realidades transcendentes, na historicidade do ser humano.
A filosofia contempla a historicidade da pessoa. Com isso, ele faz lembrar que a razão tem um caráter concreto, ou seja, a intenção presente na razão é tomada como figura concreta em seu modo formal de estar lançada ao real. Retomando o que foi dito sobre o papel da práxis, pode-se dizer que a práxis não é um conceito psicológico, social ou ético, mas um conceito estrutural. Esse conceito estrutural da práxis encontra-se presente na realidade histórica do indivíduo. “A filosofia como momento teórico desempenha sua capacidade libertadora e ela mesma se potencia como tal ao recuperar consciente e reflexivamente seu papel como momento teórico adequado da práxis histórica”. (Ellacuría, 1985, p.56). A práxis contempla o caráter estrutural-social e a libertação precisa ter também “um caráter estrutural-social”.
Considerando que a filosofia para Ellacuría precisa encontrar-se encarnada na realidade social e histórica, surge a possibilidade de se pensar uma filosofia “cristã”, como proposta nova em favor do ser humano. A filosofia cristã teria como meta instalar seu caráter filosófico autônomo no lugar privilegiado da verdade da história, em sintonia com a experiência da Cruz, pois a Cruz remete-nos a esperança libertadora. A filosofia cristã, nessa perspectiva, identifica-se com a história de crucificação do povo e com toda forma de dominação e exploração, sobretudo, na realidade da América Latina.
Ignácio Ellacuría no artigo “Funcion Liberadora de la Filosofia” de 1985 lembra do contexto no qual emergiu a Teologia da Libertação. A mesma surgiu devido a um dilema na área da política, da realidade social e religiosa, em que a opressão e a desigualdade social contribuíram para se pensar numa nova hermenêutica teológica. Ele defende a criação de um estilo filosófico Latino-Americano, partindo da experiência histórica dos diversos rostos crucificados pela desigualdade social, tendo por meio da filosofia um suporte crítico e libertador. Essa seria a função da “Filosofia da Libertação”. Vejamos agora como ele compreende o objeto da filosofia, tendo como referencial dois escritos de sua autoria: “El objeto de la filosofia” de 1992 e “ Filosofia de la realidad história”de 1990.
O objeto da Filosofia
A realidade social está metafisicamente entrelaçada na história. Para tanto, ele fala da inter-relação entre natureza e história. Sobre esse ponto escreve: “não se pode tratar da natureza sem referir-se a história, nem do homem sem referir-se a sociedade e reciprocamente”.(Ellacuría, 1992, p.64). Porém, abarcando a totalidade como objeto, a filosofia depara-se com uma questão intrigante: “como se configuram a peculiaridade e a totalidade em cada uma das coisas?” (Ellacuría,1992, p.64). Por isso, diz que o objeto da filosofia deve ser tomado como um campo vasto, porque a filosofia deve configurar-se a todas as realidades existentes. Essa seria segundo Ellacuría o primeiro objeto formal da filosofia: sub ratione totius.
Mesmo falando em objeto da filosofia no “sub ratione totius”, Hegel e Marx salientaram a importância da unidade do objeto filosófico. Mas, Ellacuría pontua precisamente que o “objeto” da filosofia precisa contemplar a realidade como um todo sistemático, pois a realidade é um todo dialético. Se em Hegel a busca pelo objeto da filosofia diz respeito ao “sentido do ser”, em Marx configura-se pelos antagonismos sociais. Ellacuría diz que não se trata de fazer uma separação entre Hegel e Marx, mas colocar em discussão a questão do “objeto” da filosofia para ambos. Comumente afirmar-se que para Hegel tal objeto é o “ser”, porém para Marx são as realidades sociais.
A questão consiste em observar que Ellacuría serve-se da filosofia de Hegel e das considerações de Marx para pensar e estruturar o seu próprio “objeto”da filosofia. Ele lembra que tanto para Hegel como para Marx, a realidade é concebida como algo dinâmico e processual. Assim, após expor a matização do objeto da filosofia em Hegel e Marx, Ellacuría explica que segundo Xavier Zubiri, “ o objeto da filosofia é o todo da realidade dinamicamente considerado”. (Ellacuría, 1992, p.71).
Para Zubiri não há distinção entre “metafísica geral”e “metafísica especial”. A filosofia nessa perspectiva contempla o todo da realidade. Então, o objeto de estudo desse pensador, segundo Ellacuría é a “realidade intramundana”. Ele explica que Hegel desenvolve uma filosofia idealista; Marx oferece um método cientifico – “materialista” e, Xavier Zubiri discorre em sua filosofia acerca de um método filosófico – “realista”. São abordagens diferentes com o mesmo objetivo: compreender a realidade. Entretanto, Ellacuría adverte que “a realidade é sempre dinâmica e seu tipo de dinamismo corresponde ao tipo de realidade”. (Ellacuría,1992, p.76). Em outras palavras, não há realidade estática. A realidade é originalmente dinâmica.
Ellacuría postula o objeto da filosofia como realidade histórica. Vejamos em que consiste essa realidade histórica. Primeiramente trata-se de uma realidade assumida no reino social através da liberdade: é a realidade mostrando suas virtudes e possibilidades. A realidade histórica engloba todos os tipos de realidades, isto é, não há realidade histórica sem realidade material; sem realidade biológica; sem realidade pessoal e; sem realidade social. “Porque ‘realidade histórica’ se entende a totalidade da realidade tal como se dá unitariamente em sua forma qualitativa, mais alta e essa forma específica de realidade que é a história, onde nos dá não somente a forma mais alta de realidade, mas o campo aberto das máximas possibilidades do real”. (Ellacuría,1992, p.84).
Por isso, Ellacuría concebe como objeto da filosofia a “realidade histórica”. Mas não se trata de conceber a realidade histórica desvinculada da pessoa humana. Nessa proporção, não há simplesmente história, mas realidade histórica. Na obra “Filosofia de la realidad histórica” de 1990, encontra-se uma explicação sobre a relação entre história e natureza material: “a história surge da natureza material e permanece indissoluvelmente enraizada a ela”. (Ellacuría,1990, p.48). Os fatores materiais são decisivos na configuração dos grupos humanos e em seu modo de viver. A materialidade da história concebida como espaço e tempo justifica-se na existência da pessoa. O espaço e o tempo remetem-se a vida.
Assim, espaço e tempo são materializados nas realidades intramundanas. Observa-se que o autor toma o Cosmo como unidade constitutiva da realidade: “cada coisa é ‘coisa-de’ um todo, dos cosmos; constitui um construto, um sistema unitário, que é o cosmos”. (Ellacuría, 1990, p.49). A realidade remete-se a algo que se manifesta em si mesmo tendo no dinamismo seu ponto central. Logo, o objeto da filosofia nesse contexto é a realidade histórica. A realidade desvela-se na realidade complexa, coletiva e sucessiva “da humanidade, e indica que a realidade histórica pode ser o objeto da filosofia”. (Ellacuría, 1992, p.473).
Pessoa e realidade histórica no sistema filosófico do autor não se contrapõem, mas se completam. A realidade histórica é matizada como realidade aberta, construída pelo ser humano. A pessoa confere a realidade histórica essa abertura existencial. “O objeto da filosofia deve ser primeiramente a realidade intramundana, a qual não significa necessariamente que Deus há de ser tão somente objeto de fé”. (Elacuría, 1992, p. 86). Deus para ele está presente na realidade histórica de seu povo. O conceito de razão teórica e prática na filosofia de Kant, segundo Ellacuría, ilustra o dilema da presença de Deus na história do ser humano, não concebido através da razão teórica a qual é tomada como especulativa, mas Deus age por meio da razão prática. Entretanto, uma razão não exclui a outra, mas a razão prática evidencia a maneira operada por Deus de estar presente no comportamento do ser humano, tendo nos atos morais Deus como o Sumo Bem.
Para finalizar, Ellacuría ao problematizar a questão do objeto da filosofia faz lembrar primeiramente que não existem duas histórias: um dos países desenvolvidos e outra dos países do terceiro mundo. Porém, há uma única história, que ele entende como realidade aberta e dinâmica perpassada pelas experiências sociais do ser humano.
Conclusão
Evidenciou-se num primeiro momento que Ignácio Ellacuría recorre a Hegel, Marx e Xavier Zubiri para mostrar os principais traços filosóficos desses pensadores tendo como intenção explicitar como discorreram em seus sistemas filosóficos a busca pelo objeto da filosofia. Ellacuría elabora o seu próprio itinerário acerca do objeto da filosofia. A realidade é tomada como algo que se faz mediante a dinamicidade. Com isso, o teólogo e filósofo espanhol apresenta como objeto da filosofia a “realidade histórica”. A realidade histórica é tomada como realidade aberta. E essa abertura somente se dá devido ao fato da pessoa ser um ente em processo de transformação e ao mesmo tempo dado à experiência da liberdade. A abertura na realidade histórica é tomada por Ellacuría como experiência “intramundana” e, Deus caminha com a pessoa nessa vivência “intramundana”. Os três escritos de Ellacuría analisados permitem dizer que sua proposta filosófica-teológica contribuiu para a fundamentação da formação da consciência cristã defendida pela Teologia da Libertação, no contexto da América Latina. Assim, essa frase de Paulo Freire resume o propósito do autor espanhol e, comumente, da Teologia da Libertação: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”.
Bibliografia
ELLACURÍA, Ignacio. Filosofia de la realidade historica. Madrid: UCA Editores, 1990.
ELLACURÍA, Ignacio. Funcion Liberadora de la Filosofia. El Salvador: ECA – Estúdios Centroamericanos de la Universidad José Simeón Cañas, 1985.
ELLACURÍA, Ignacio. Para una Filosofia desde América Latina. Bogotá: Pontifícia Universidad Javeriana, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Ignacio Ellacuría reflete sobre a necessidade de sistematizar uma filosofia a partir da realidade da América Latina. Apresentaremos aqui os principais traços de sua filosofia, voltada para a realidade libertadora, tendo como referencial teórico os artigos: “Funcion Libertadora de la Filosofia”,
“El objeto de la filosofia” e “Filosofia de la realidad histórica”. Seus escritos visam contribuir na formação da consciência social dos cristãos da América Latina, para a qual trabalhou incansavelmente. O autor foi assassinado por um grupo paramilitar de El Salvador, em 1990.
O caráter libertador da Filosofia
O teólogo e filósofo Ignácio Ellacuría desenvolve uma reflexão atual sobre o papel da filosofia nas relações humanas em vista da promoção da dignidade do ser humano. Trata-se de uma filosofia concebida como busca pela verdade em sintonia com a liberdade. Lembrando, porém, que os escritos de Ignácio Ellacuría, tanto na área da teologia como da filosofia refletem acerca da situação da opressão e da desigualdade social na América Latina. O autor lembra que na América Latina existe uma Teologia própria conhecida como Teologia da Libertação. Porém, carece, ainda, de uma Filosofia com o “rosto”da América Latina, enquanto originada da sua própria realidade histórica. Uma razão pela não existência ainda de um método filosófico de origem Latino Americano, na avaliação de alguns estudiosos, pode ser este: “devido ser um continente nacionalista, indigenista, autóctonas, etc”. (Ellacuría, 1985, p. 46).
A proposta filosófica de Ellacuría tem como meta abordar a filosofia na condição de meio que proporciona a liberdade através da experiência da cultura e das estruturas sociais, dentro da realidade da pessoa humana, onde ela precisa realizar-se em espírito de liberdade. A liberdade é tema importante na filosofia desse pensador. Assim, ele explica que a filosofia desde os pré-socráticos, procura refletir sobre a liberdade. Porém, não se trata de uma liberdade abstrata, mas sim, prática na história do ser humano.
Tendo subjacente o artigo de 1985, “Funcion Liberadora de la Filosofia,” I. Ellacuría parte de uma constatação: a América Latina por ter vivido um contexto de opressão não foi possível criar uma tradição filosófica. Ele considera a filosofia responsável por conceder “uma capacidade crítica ”ao ser humano diante das ideologias. Ellacuría recorda que a filosofia é uma poderosa “arma” no combate a opressão social, pois leva o indivíduo a criar consciência do seu papel enquanto agente de transformação. Assim, recorda que a filosofia se distingue historicamente, por sua criticidade.
A filosofia busca, entretanto, os fundamentos racionais que o indivíduo necessita para posicionar-se diante de seu contexto histórico. Com isso, “a função libertadora da filosofia é exigida então, por sua própria condição de criticidade e fundamentação e por sua vez, obriga ao fazer filosófico buscar uma fundamentação crítica”. (Ellacuría,1985, p. 51). A reflexão filosófica de Ellacuría visa chamar a atenção para a importância da emancipação do sujeito. O teólogo lembra que na década de oitenta, dever-se-ia pensar nos processos sócio-econômicos que a sociedade estava passando, de opressão pelos regimes totalitários, como pela gritante desigualdade social nos países classificados como “terceiro mundo”. Nessa perspectiva ele pontua que se deveria falar da “autodeterminação pessoal do sujeito livre e consciente”. (Ellacuría, 1985, p.53).
A filosofia deve ser utilizada como referencial teórico de enfrentamento diante da realidade de desigualdade social, pois ilumina, interpreta e transforma a pessoa humana. Está subjacente ao seu pensamento, a capacidade da filosofia enquanto meio que proporciona a práxis. Em outras palavras: “O homem tem uma forma peculiar de enfrentar-se com a realidade que é a habilidade intelectiva, que independentemente de sua origem, natureza e condicionamentos, estruturais, têm sua peculiaridade que deve ser estudada não só para conhecer o que é o homem, mas para anteriormente poder fazer um uso crítico de sua própria inteligência.” (Ellacuría,1985, p.54).
Entretanto, adverte que esta possibilidade da filosofia em proporcionar a liberdade através da inteligência serve tanto para libertar o homem como também para oprimi-lo. Se a filosofia faz parte da condição existencial do ser humano, então ela contempla a realidade social do indivíduo. Lembrando que “homem, sociedade e história são três realidades vinculadas entre si, porém cada uma tem sua peculiaridade”. (Ellacuría, 1985, p.54). A temática da história na filosofia encontra espaço fecundo em suas reflexões, pois ele propõe uma filosofia da realidade histórica, como ponto nefrálgico de seu método filosófico. Esse assunto será evidenciado no segundo artigo do autor, em relação ao objeto da filosofia. A filosofia é uma busca transcendental, porém vinculada às realidades transcendentes, na historicidade do ser humano.
A filosofia contempla a historicidade da pessoa. Com isso, ele faz lembrar que a razão tem um caráter concreto, ou seja, a intenção presente na razão é tomada como figura concreta em seu modo formal de estar lançada ao real. Retomando o que foi dito sobre o papel da práxis, pode-se dizer que a práxis não é um conceito psicológico, social ou ético, mas um conceito estrutural. Esse conceito estrutural da práxis encontra-se presente na realidade histórica do indivíduo. “A filosofia como momento teórico desempenha sua capacidade libertadora e ela mesma se potencia como tal ao recuperar consciente e reflexivamente seu papel como momento teórico adequado da práxis histórica”. (Ellacuría, 1985, p.56). A práxis contempla o caráter estrutural-social e a libertação precisa ter também “um caráter estrutural-social”.
Considerando que a filosofia para Ellacuría precisa encontrar-se encarnada na realidade social e histórica, surge a possibilidade de se pensar uma filosofia “cristã”, como proposta nova em favor do ser humano. A filosofia cristã teria como meta instalar seu caráter filosófico autônomo no lugar privilegiado da verdade da história, em sintonia com a experiência da Cruz, pois a Cruz remete-nos a esperança libertadora. A filosofia cristã, nessa perspectiva, identifica-se com a história de crucificação do povo e com toda forma de dominação e exploração, sobretudo, na realidade da América Latina.
Ignácio Ellacuría no artigo “Funcion Liberadora de la Filosofia” de 1985 lembra do contexto no qual emergiu a Teologia da Libertação. A mesma surgiu devido a um dilema na área da política, da realidade social e religiosa, em que a opressão e a desigualdade social contribuíram para se pensar numa nova hermenêutica teológica. Ele defende a criação de um estilo filosófico Latino-Americano, partindo da experiência histórica dos diversos rostos crucificados pela desigualdade social, tendo por meio da filosofia um suporte crítico e libertador. Essa seria a função da “Filosofia da Libertação”. Vejamos agora como ele compreende o objeto da filosofia, tendo como referencial dois escritos de sua autoria: “El objeto de la filosofia” de 1992 e “ Filosofia de la realidad história”de 1990.
O objeto da Filosofia
A realidade social está metafisicamente entrelaçada na história. Para tanto, ele fala da inter-relação entre natureza e história. Sobre esse ponto escreve: “não se pode tratar da natureza sem referir-se a história, nem do homem sem referir-se a sociedade e reciprocamente”.(Ellacuría, 1992, p.64). Porém, abarcando a totalidade como objeto, a filosofia depara-se com uma questão intrigante: “como se configuram a peculiaridade e a totalidade em cada uma das coisas?” (Ellacuría,1992, p.64). Por isso, diz que o objeto da filosofia deve ser tomado como um campo vasto, porque a filosofia deve configurar-se a todas as realidades existentes. Essa seria segundo Ellacuría o primeiro objeto formal da filosofia: sub ratione totius.
Mesmo falando em objeto da filosofia no “sub ratione totius”, Hegel e Marx salientaram a importância da unidade do objeto filosófico. Mas, Ellacuría pontua precisamente que o “objeto” da filosofia precisa contemplar a realidade como um todo sistemático, pois a realidade é um todo dialético. Se em Hegel a busca pelo objeto da filosofia diz respeito ao “sentido do ser”, em Marx configura-se pelos antagonismos sociais. Ellacuría diz que não se trata de fazer uma separação entre Hegel e Marx, mas colocar em discussão a questão do “objeto” da filosofia para ambos. Comumente afirmar-se que para Hegel tal objeto é o “ser”, porém para Marx são as realidades sociais.
A questão consiste em observar que Ellacuría serve-se da filosofia de Hegel e das considerações de Marx para pensar e estruturar o seu próprio “objeto”da filosofia. Ele lembra que tanto para Hegel como para Marx, a realidade é concebida como algo dinâmico e processual. Assim, após expor a matização do objeto da filosofia em Hegel e Marx, Ellacuría explica que segundo Xavier Zubiri, “ o objeto da filosofia é o todo da realidade dinamicamente considerado”. (Ellacuría, 1992, p.71).
Para Zubiri não há distinção entre “metafísica geral”e “metafísica especial”. A filosofia nessa perspectiva contempla o todo da realidade. Então, o objeto de estudo desse pensador, segundo Ellacuría é a “realidade intramundana”. Ele explica que Hegel desenvolve uma filosofia idealista; Marx oferece um método cientifico – “materialista” e, Xavier Zubiri discorre em sua filosofia acerca de um método filosófico – “realista”. São abordagens diferentes com o mesmo objetivo: compreender a realidade. Entretanto, Ellacuría adverte que “a realidade é sempre dinâmica e seu tipo de dinamismo corresponde ao tipo de realidade”. (Ellacuría,1992, p.76). Em outras palavras, não há realidade estática. A realidade é originalmente dinâmica.
Ellacuría postula o objeto da filosofia como realidade histórica. Vejamos em que consiste essa realidade histórica. Primeiramente trata-se de uma realidade assumida no reino social através da liberdade: é a realidade mostrando suas virtudes e possibilidades. A realidade histórica engloba todos os tipos de realidades, isto é, não há realidade histórica sem realidade material; sem realidade biológica; sem realidade pessoal e; sem realidade social. “Porque ‘realidade histórica’ se entende a totalidade da realidade tal como se dá unitariamente em sua forma qualitativa, mais alta e essa forma específica de realidade que é a história, onde nos dá não somente a forma mais alta de realidade, mas o campo aberto das máximas possibilidades do real”. (Ellacuría,1992, p.84).
Por isso, Ellacuría concebe como objeto da filosofia a “realidade histórica”. Mas não se trata de conceber a realidade histórica desvinculada da pessoa humana. Nessa proporção, não há simplesmente história, mas realidade histórica. Na obra “Filosofia de la realidad histórica” de 1990, encontra-se uma explicação sobre a relação entre história e natureza material: “a história surge da natureza material e permanece indissoluvelmente enraizada a ela”. (Ellacuría,1990, p.48). Os fatores materiais são decisivos na configuração dos grupos humanos e em seu modo de viver. A materialidade da história concebida como espaço e tempo justifica-se na existência da pessoa. O espaço e o tempo remetem-se a vida.
Assim, espaço e tempo são materializados nas realidades intramundanas. Observa-se que o autor toma o Cosmo como unidade constitutiva da realidade: “cada coisa é ‘coisa-de’ um todo, dos cosmos; constitui um construto, um sistema unitário, que é o cosmos”. (Ellacuría, 1990, p.49). A realidade remete-se a algo que se manifesta em si mesmo tendo no dinamismo seu ponto central. Logo, o objeto da filosofia nesse contexto é a realidade histórica. A realidade desvela-se na realidade complexa, coletiva e sucessiva “da humanidade, e indica que a realidade histórica pode ser o objeto da filosofia”. (Ellacuría, 1992, p.473).
Pessoa e realidade histórica no sistema filosófico do autor não se contrapõem, mas se completam. A realidade histórica é matizada como realidade aberta, construída pelo ser humano. A pessoa confere a realidade histórica essa abertura existencial. “O objeto da filosofia deve ser primeiramente a realidade intramundana, a qual não significa necessariamente que Deus há de ser tão somente objeto de fé”. (Elacuría, 1992, p. 86). Deus para ele está presente na realidade histórica de seu povo. O conceito de razão teórica e prática na filosofia de Kant, segundo Ellacuría, ilustra o dilema da presença de Deus na história do ser humano, não concebido através da razão teórica a qual é tomada como especulativa, mas Deus age por meio da razão prática. Entretanto, uma razão não exclui a outra, mas a razão prática evidencia a maneira operada por Deus de estar presente no comportamento do ser humano, tendo nos atos morais Deus como o Sumo Bem.
Para finalizar, Ellacuría ao problematizar a questão do objeto da filosofia faz lembrar primeiramente que não existem duas histórias: um dos países desenvolvidos e outra dos países do terceiro mundo. Porém, há uma única história, que ele entende como realidade aberta e dinâmica perpassada pelas experiências sociais do ser humano.
Conclusão
Evidenciou-se num primeiro momento que Ignácio Ellacuría recorre a Hegel, Marx e Xavier Zubiri para mostrar os principais traços filosóficos desses pensadores tendo como intenção explicitar como discorreram em seus sistemas filosóficos a busca pelo objeto da filosofia. Ellacuría elabora o seu próprio itinerário acerca do objeto da filosofia. A realidade é tomada como algo que se faz mediante a dinamicidade. Com isso, o teólogo e filósofo espanhol apresenta como objeto da filosofia a “realidade histórica”. A realidade histórica é tomada como realidade aberta. E essa abertura somente se dá devido ao fato da pessoa ser um ente em processo de transformação e ao mesmo tempo dado à experiência da liberdade. A abertura na realidade histórica é tomada por Ellacuría como experiência “intramundana” e, Deus caminha com a pessoa nessa vivência “intramundana”. Os três escritos de Ellacuría analisados permitem dizer que sua proposta filosófica-teológica contribuiu para a fundamentação da formação da consciência cristã defendida pela Teologia da Libertação, no contexto da América Latina. Assim, essa frase de Paulo Freire resume o propósito do autor espanhol e, comumente, da Teologia da Libertação: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”.
Bibliografia
ELLACURÍA, Ignacio. Filosofia de la realidade historica. Madrid: UCA Editores, 1990.
ELLACURÍA, Ignacio. Funcion Liberadora de la Filosofia. El Salvador: ECA – Estúdios Centroamericanos de la Universidad José Simeón Cañas, 1985.
ELLACURÍA, Ignacio. Para una Filosofia desde América Latina. Bogotá: Pontifícia Universidad Javeriana, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
sábado, 20 de março de 2010
Missão Integral
Carlos Cunha, teólogo batista.
Missão Integral foi um movimento de caráter evangelical(1) que eclodiu na década de 70 liderado principalmente por teólogos e missiólogos latino-americanos. Reagindo à deformação do evangelho pelo condicionamento ideológico capitalista e a sua restrição a uma esfera “espiritual” sem compromisso com a situação do mundo, que acometia o fundamentalismo evangélico tradicional, esses pensadores propuseram um compromisso com o evangelho em todo o seu alcance, e com o homem como um ser integral. Seu lema era: “o evangelho todo, para o homem todo, pelo mundo todo”. Entre as figuras mais importantes do movimento, estavam René Padilla, Samuel Escobar, Pedro Arana, Valdir Steuernagel e muitos outros.
O evento crítico para a divulgação dessa nova perspectiva foi o Congresso Lausanne I, na Suíça, realizado em julho de 1974. Durante esse evento, que reuniu 2473 participantes e 1000 observadores de 150 países e 135 denominações, um grande debate ocorreu em torno da extensão da missão. Havia uma pressão no sentido de se identificar a missão apenas com a evangelização, de se ignorar qualquer consideração a respeito do papel que o contexto cultural e os condicionamentos ideológicos tinham sobre a teologia e a prática missionária, e de dar prioridades às vozes do primeiro mundo nas conclusões. Mas com o apoio de um dos líderes do encontro, o Dr. John Stott, os latino-americanos puderam expressar suas idéias.
A reflexão teológica da Missão Integral buscou uma compreensão adequada dos problemas da América Latina esforçando-se por promover uma reflexão teológica autóctone, contextualizada. Grande atenção foi dada à questão da pobreza e da justiça social, à questão da estratégia missionária, e à educação teológica. Nesse processo é possível observar um diálogo com as ciências humanas, como instrumento de análise para melhor compreensão da situação latino-americana, bem como com os teólogos da libertação. Observa-se também uma tendência de apoiar o socialismo contra o capitalismo com a sua teoria desenvolvimentista; de um modo geral, no entanto, há uma postura bastante crítica visando a preservação do evangelho bíblico. Como o nome indica, o movimento da Missão Integral influenciou principalmente a hermenêutica bíblica e a reflexão missiológica, havendo uma reflexão menor a respeito de outras áreas.
Com o tema “Para que o Mundo ouça a Sua (Deus) voz”, o movimento da Missão Integral foi responsável por impactar a maneira de ver e fazer missão das igrejas reformadas no Brasil.
O primeiro impacto foi produzido pela ruptura com o mito da polarização teológica entre ação social e evangelização. Para muitos grupos reformados, ação social, ou melhor, serviço social, era visto como instrumento para evangelização. Satisfaziam-se, socialmente falando, com serviços sociais assistencialistas e muitas vezes usados como “iscas” para ações proselitistas.
Estes grupos perceberam então que não se pode desvincular evangelização da ação social. Estas são duas realidades inseparáveis que se sustentam e se fortalecem mutuamente numa espiral ascendente de preocupação crescente. Evangelização e responsabilidade social são partes integrantes da missio Dei(2), portanto inseparáveis e indispensáveis na missão integral da Igreja de Jesus no mundo e para o mundo.
Com o tema “Para que o Mundo ouça a Sua (Deus) voz”, o movimento da Missão Integral foi responsável por impactar a maneira de ver e fazer missão das igrejas reformadas no Brasil.
O primeiro impacto foi produzido pela ruptura com o mito da polarização teológica entre ação social e evangelização. Para muitos grupos reformados, ação social, ou melhor, serviço social, era visto como instrumento para evangelização. Satisfaziam-se, socialmente falando, com serviços sociais assistencialistas e muitas vezes usados como “iscas” para ações proselitistas.
Estes grupos perceberam então que não se pode desvincular evangelização da ação social. Estas são duas realidades inseparáveis que se sustentam e se fortalecem mutuamente numa espiral ascendente de preocupação crescente. Evangelização e responsabilidade social são partes integrantes da missio Dei(2), portanto inseparáveis e indispensáveis na missão integral da Igreja de Jesus no mundo e para o mundo.
O segundo impacto foi sentido quando se desmistificou o mito do dualismo humano. O evangelismo protestante de missão oriundo dos Estados Unidos e da Europa limitou o conceito de salvação, achando que Cristo veio salvar apenas a alma do ser humano. De inspiração platônica, este conceito de salvação é deveras espiritualista.
O ser humano é um todo. Partindo da perspectiva bíblica, o ser humano poderia ser definido como sendo uma comunidade integrada de corpo e alma. Entretanto, a ausência de compreensão do indivíduo como ser integral, pela própria Igreja, tem levado a mesma a desvalorizar não somente o ser humano na sociedade, como também o próprio evangelho para o qual ele foi chamado a proclamar no mundo. Só existe fidelidade na evangelização quando existe fidelidade na missão integral da Igreja.
O ser humano é um todo. Partindo da perspectiva bíblica, o ser humano poderia ser definido como sendo uma comunidade integrada de corpo e alma. Entretanto, a ausência de compreensão do indivíduo como ser integral, pela própria Igreja, tem levado a mesma a desvalorizar não somente o ser humano na sociedade, como também o próprio evangelho para o qual ele foi chamado a proclamar no mundo. Só existe fidelidade na evangelização quando existe fidelidade na missão integral da Igreja.
O movimento da Missão Integral não só derrubou os mitos da polarização teológica entre ação social e evangelização e dualismo humano como também legou as igrejas reformadas no Brasil a capacidade de pensar e fazer missão a partir de situações sociais concretas. A articulação entre a hermenêutica do texto bíblico e a hermenêutica da vida a partir de igrejas autóctones passou a ser o lugar teológico ideal.
Notas:
(1) Evangelical” não no sentido amplo do termo de evangélico, mas para identificar um grupo de cristãos comprometidos com o movimento da Missão Integral e a sua influência na maneira de crer e viver a fé cristã. Samuel Escobar, líder evangelical latino-americano, faz uma classificação ponderada sobre o perfil do evangelical: (1) herança teológica da Reforma – solas; (2) paixão evangelística oriunda dos avivamentos do século XVIII; (3) piedade associada a uma intensa vocação missionária herdada do pietismo; (4) postura anabatista da separação entre Igreja e Estado; (5) ética puritana e (6) dimensão social do evangelho aliada a diaconia e postura profética perante a sociedade.
(2) Conceito importante para a Missão Integral. Originalmente pensada por Karl Barth a missio Dei foi popularizado por Georg Vicedom no livro A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão, publicado pela editora Sinodal em 1996. Segundo Vicedom, missio Dei significa que a missão é obra de Deus. Ele é o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo da missão. A Igreja é instrumento de Deus, isto é, se ela se deixar usar por ele. Não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente, sobretudo no livro dos Atos dos Apóstolos. Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. O derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o enviado, sem que com essa trindade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas.
(1) Evangelical” não no sentido amplo do termo de evangélico, mas para identificar um grupo de cristãos comprometidos com o movimento da Missão Integral e a sua influência na maneira de crer e viver a fé cristã. Samuel Escobar, líder evangelical latino-americano, faz uma classificação ponderada sobre o perfil do evangelical: (1) herança teológica da Reforma – solas; (2) paixão evangelística oriunda dos avivamentos do século XVIII; (3) piedade associada a uma intensa vocação missionária herdada do pietismo; (4) postura anabatista da separação entre Igreja e Estado; (5) ética puritana e (6) dimensão social do evangelho aliada a diaconia e postura profética perante a sociedade.
(2) Conceito importante para a Missão Integral. Originalmente pensada por Karl Barth a missio Dei foi popularizado por Georg Vicedom no livro A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão, publicado pela editora Sinodal em 1996. Segundo Vicedom, missio Dei significa que a missão é obra de Deus. Ele é o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo da missão. A Igreja é instrumento de Deus, isto é, se ela se deixar usar por ele. Não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente, sobretudo no livro dos Atos dos Apóstolos. Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. O derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o enviado, sem que com essa trindade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas.
sábado, 13 de março de 2010
O reformador Calvino
Trechos da Entrevista à IHU On-Line (revista eletrônica do Instituto Humanitas da UNISINOS) de Bernard Cottret, professor universitário, autor de uma famosa “Biografia de Calvino” .
O que faz a diferença do empreendimento de Calvino e de Lutero de “purificar” o cristianismo?
Bernard Cottret - Lutero, em sua concepção do sacramento, permanece ligado à substância. Nele, fala-se de consubstanciação a propósito da Santa Ceia, e o pão e o vinho coexistem com o corpo e o sangue do Salvador. Para Calvino, isso não tem sentido; ele muda radicalmente de perspectiva por sua teoria do signo. A purificação calvinista do cristianismo consiste em extirpar impiedosamente a idolatria, incluindo a liturgia. Praticamente não há arte sacra calvinista – quando há evidentemente uma arte sacra luterana, anglicana .... católica.
Quais são os pontos de proximidade e de ruptura que o senhor destacaria entre estes dois reformadores?
Bernard Cottret - Lutero e Calvino têm, ao mesmo tempo, teologias próximas por sua afirmação da justificação pela fé ou sua recusa do sacrifício da missa, mas também dessemelhanças. É, pois, falso reduzir, como se faz com frequência, o calvinismo somente à predestinação.
Quais são as influências do “Calvino jurista” no “Calvino teólogo”? A austeridade de seu pensamento seria explicada por esta diferença?
Bernard Cottret - Calvino é jurista onde Lutero e os outros receberam uma formação clássica de teólogos católicos. Isso induz diversas características notáveis que eu destaquei em minha biografia:
1) Calvino permanece profundamente laico;
2) Ele jamais recebeu consagração pastoral, enquanto Lutero e os outros são antigos padres;
3) De maneira igualmente essencial, ele recusa dissociar a Lei e a Graça, a Torah e o Evangelho. De onde provém, sem dúvida, o filo-semitismo notável de diversos reformadores, no qual Lutero se mostra funcionalmente antijudaico.
Em que medida o calvinismo é uma reação ao protestantismo e ao catolicismo?
Bernard Cottret - O calvinismo é uma construção dogmática que eu distinguiria da fé viva de Calvino. Muitos protestantes calvinistas preferem dizerem-se reformados para não incorrer na censura de idolatria. Um bom calvinista não deveria dizer-se “calvinista”, e, em sua origem, o calvinismo é uma invenção de luteranos da segunda ou terceira geração, hostis à teologia de Calvino, em particular sobre as questões eucarísticas. Calvino em todo o caso não queria ser calvinista...
O calvinismo foi uma segunda fase do protestantismo?
Bernard Cottret - Embora ele tenha aparecido historicamente após Lutero, Calvino promoveu uma teologia profundamente original, e é difícil falar de uma segunda fase ou de um aprofundamento. É fundamentalmente outra tradição cultural, ligada ao humanismo francês – pista que eu explorei em minha biografia.
Qual é a atualidade de Calvino 500 anos após seu nascimento?
Bernard Cottret - A tarefa do historiador parece-me ser a de sempre: descartar o anacronismo, e eu desconfio de expressões como “a atualidade de Calvino”. No fundo, e para retomar Calvino sobre este ponto, sua atualidade se dá no aspecto do olhar ou da fé. Não existe atualidade em si de Calvino, de Marx ou de Jesus, mas continua a permanente exigência de uma renovação interior. Ou, para empregar outra palavra, de uma reforma sempre ativa.
O que faz a diferença do empreendimento de Calvino e de Lutero de “purificar” o cristianismo?
Bernard Cottret - Lutero, em sua concepção do sacramento, permanece ligado à substância. Nele, fala-se de consubstanciação a propósito da Santa Ceia, e o pão e o vinho coexistem com o corpo e o sangue do Salvador. Para Calvino, isso não tem sentido; ele muda radicalmente de perspectiva por sua teoria do signo. A purificação calvinista do cristianismo consiste em extirpar impiedosamente a idolatria, incluindo a liturgia. Praticamente não há arte sacra calvinista – quando há evidentemente uma arte sacra luterana, anglicana .... católica.
Quais são os pontos de proximidade e de ruptura que o senhor destacaria entre estes dois reformadores?
Bernard Cottret - Lutero e Calvino têm, ao mesmo tempo, teologias próximas por sua afirmação da justificação pela fé ou sua recusa do sacrifício da missa, mas também dessemelhanças. É, pois, falso reduzir, como se faz com frequência, o calvinismo somente à predestinação.
Quais são as influências do “Calvino jurista” no “Calvino teólogo”? A austeridade de seu pensamento seria explicada por esta diferença?
Bernard Cottret - Calvino é jurista onde Lutero e os outros receberam uma formação clássica de teólogos católicos. Isso induz diversas características notáveis que eu destaquei em minha biografia:
1) Calvino permanece profundamente laico;
2) Ele jamais recebeu consagração pastoral, enquanto Lutero e os outros são antigos padres;
3) De maneira igualmente essencial, ele recusa dissociar a Lei e a Graça, a Torah e o Evangelho. De onde provém, sem dúvida, o filo-semitismo notável de diversos reformadores, no qual Lutero se mostra funcionalmente antijudaico.
Em que medida o calvinismo é uma reação ao protestantismo e ao catolicismo?
Bernard Cottret - O calvinismo é uma construção dogmática que eu distinguiria da fé viva de Calvino. Muitos protestantes calvinistas preferem dizerem-se reformados para não incorrer na censura de idolatria. Um bom calvinista não deveria dizer-se “calvinista”, e, em sua origem, o calvinismo é uma invenção de luteranos da segunda ou terceira geração, hostis à teologia de Calvino, em particular sobre as questões eucarísticas. Calvino em todo o caso não queria ser calvinista...
O calvinismo foi uma segunda fase do protestantismo?
Bernard Cottret - Embora ele tenha aparecido historicamente após Lutero, Calvino promoveu uma teologia profundamente original, e é difícil falar de uma segunda fase ou de um aprofundamento. É fundamentalmente outra tradição cultural, ligada ao humanismo francês – pista que eu explorei em minha biografia.
Qual é a atualidade de Calvino 500 anos após seu nascimento?
Bernard Cottret - A tarefa do historiador parece-me ser a de sempre: descartar o anacronismo, e eu desconfio de expressões como “a atualidade de Calvino”. No fundo, e para retomar Calvino sobre este ponto, sua atualidade se dá no aspecto do olhar ou da fé. Não existe atualidade em si de Calvino, de Marx ou de Jesus, mas continua a permanente exigência de uma renovação interior. Ou, para empregar outra palavra, de uma reforma sempre ativa.
quarta-feira, 3 de março de 2010
Bibliografia Complementar
Aqui você vai encontrar referências a outros livros e artigos em torno ao tema de Iniciação à Teologia Cristã, que não estão em "A casa da Teologia" . Para facilitar a localização, as referências bibliográficas complementares estão organizadas a partir dos capítulos do nosso livro. Bom trabalho!
(1) Na Varanda
LIBANIO, João Batista. Introdução à Vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2006, 3d, pp. 37-51 (cap.2: aprender a pensar); pp.239-256 (cap.13: leitura).
BRIGHENTI, Agenor. A Igreja perplexa. A novas perguntas, novas respostas. São Paulo: Paulinas-SOTER, 2004, pp.93-115 (A emergência de grandes desafios)
(1) Na Varanda
LIBANIO, João Batista. Introdução à Vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2006, 3d, pp. 37-51 (cap.2: aprender a pensar); pp.239-256 (cap.13: leitura).
BRIGHENTI, Agenor. A Igreja perplexa. A novas perguntas, novas respostas. São Paulo: Paulinas-SOTER, 2004, pp.93-115 (A emergência de grandes desafios)
(Em processo de construção)
Teologia, um saber amoroso
“Se destruíres teus instrumentos de opressão, e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa; se acolheres de coração aberto o indigente e prestares todo socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia. O Senhor te conduzirá sempre e saciará tua sede na aridez da vida, e renovará o vigor do teu corpo; serás como um jardim bem irrigado, como uma fonte de águas que jamais secarão” (Is 58,9-12).
A teologia se propõe a ser um discurso articulado sobre Deus e a partir de Deus, que é a fonte de toda Vida, a raiz e o princípio de todo amor, o próprio Amor (1 Jo 4,16). Isto confere ao saber teológico um grande diferencial, que toca sua estrutura interna. Fazer teologia é pensar e se expressar a partir do Amor, tal como se revelou na história da relação de Deus com seu Povo. Por isso, a teologia visa também aumentar a capacidade humana de amar.
A teologia não é um saber neutro, no qual o sujeito cognoscente se distancia com frieza matemática do objeto que pretende conhecer. Aliás, este próprio conceito de “neutralidade científica” está em crise, desde que um grupo significativo de pensadores afirmou que o olhar do observador influencia o resultado da observação, a começar do campo da microfísica e das estruturas moleculares. É parte intrínseca da teologia sua finalidade de levar o(a) teólogo(a) e a comunidade eclesial a conhecer o Deus-Amor. Ora, conhecer o Amor significa deixar-se amar, deixar-se tocar, aceitar ser iluminado por uma luz que não vem de si próprio (Sl 36,9). E ao experimentar o amor de Deus, amá-lo mais e, no Seu amor, amar a todas as suas criaturas (cf. 1 Jo 4,8). Se levarmos às últimas conseqüências a afirmação joanina de quem “quem ama conhece a Deus”, consideraremos que, no mínimo, o amor é a fé em potencial, ainda não plenamente manifestada.
Isso significa ainda que a teologia é simultaneamente uma reflexão sobre o amor (ágape-logia), que deve levar o ser humano a ser mais apaixonado por Deus e seu projeto salvífico em relação à humanidade e ao cosmos. A linguagem mais adequada para se aproximar deste mistério fontal, comporta algo específico. A teologia cristã, desde os princípios, vive a tensão entre poder falar de Deus, pois Ele mesmo se revelou (dimensão katafática), e reconhecer que todo discurso sobre o Senhor não consegue abranger a grandeza e a profundidade do Divino (dimensão apofática).
Porque é um falar sobre o Amor, a partir do Amor e visando fazer o ser humano mais amoroso, a teologia não pode lidar somente com conceitos. Toda a história da teologia no ocidente, especialmente a partir da escolástica, levou a uma grande conquista: refletir de Deus com conceitos abalizados. É algo irrenunciável para realizar a tarefa de “dar razões para nossa esperança”. Mas a teologia necessita também recorrer à história de Deus nas vidas das pessoas (caráter testemunhal) e lançar mão das analogias e da linguagem poética. Só assim, numa pluralidade de linguagens e abordagens, deixar-se-á tocar pelo mistério amoroso de Deus.
Não se trata novamente de compartimentar a teologia, reservando somente para a espiritualidade a dimensão amorosa da teologia; para a moral seu aspecto ético; e para as outras disciplinas seu caráter racional. Toda e qualquer disciplina teológica precisa estar embuída de espiritualidade, pois é um discurso que leva a conhecer e deixar-se conhecer por Deus, viver em intimidade com o Senhor, amá-lo e servi-lo. Comporta também uma dimensão ética, pois o serviço a Deus e ao seu Reino se visibiliza nas relações interpessoais e nas estruturas culturais, sócio-políticas e econômicas.
Quando se afirma que a teologia é um discurso amoroso sobre Deus, leva-se em conta que o afeto é componente essencial desta forma específica do saber. No entanto, isso não significa fideísmo, ou um discurso religioso ingênuo e adocicado pelo pietismo. A teologia não pode abandonar a coerência dos conceitos, o necessário uso da razão, de forma crítica e construtiva, e a articulação com os outros saberes humanos. Enquanto exercício da razão iluminada pela fé, é o amor lúcido, o amor pensante. Fazer teologia exige tanto o distanciamento crítico da razão quanto o envolvimento amoroso da fé. Desta tensão salutar emerge o diferencial da teologia.
É bom sinal quando um instituto de teologia, ao fazer sua avaliação anual com os alunos e professores, se pergunta: em que sentido a aprendizagem da teologia nos ajudou a conhecer, amar e servir melhor a Deus e a seu Povo. Em que aspectos auxiliou a peregrinação espiritual dos professores e dos alunos? Uma das tentações mais fortes de qualquer forma de saber, inclusive da teologia, é levar à auto-suficiência, nutrindo o orgulho e a vaidade. A lógica sutil consiste em: “porque sei mais do que os outros, sou melhor do que eles”. Assim, o conhecimento racional ocupa o lugar do conhecimento intuitivo e teologal (conhecer a Deus, ao viver a fé, a esperança e a caridade) e parece dispensá-lo. Na realidade da comunidade eclesial, os dois se completam. O (a) teólogo(a) é intérprete não somente dos dados teológicos da Escritura, na corrente da Tradição viva de sua Igreja, mas também das manifestações atuais da fé, na sua beleza e ambigüidade.
A teologia se propõe a ser um discurso articulado sobre Deus e a partir de Deus, que é a fonte de toda Vida, a raiz e o princípio de todo amor, o próprio Amor (1 Jo 4,16). Isto confere ao saber teológico um grande diferencial, que toca sua estrutura interna. Fazer teologia é pensar e se expressar a partir do Amor, tal como se revelou na história da relação de Deus com seu Povo. Por isso, a teologia visa também aumentar a capacidade humana de amar.
A teologia não é um saber neutro, no qual o sujeito cognoscente se distancia com frieza matemática do objeto que pretende conhecer. Aliás, este próprio conceito de “neutralidade científica” está em crise, desde que um grupo significativo de pensadores afirmou que o olhar do observador influencia o resultado da observação, a começar do campo da microfísica e das estruturas moleculares. É parte intrínseca da teologia sua finalidade de levar o(a) teólogo(a) e a comunidade eclesial a conhecer o Deus-Amor. Ora, conhecer o Amor significa deixar-se amar, deixar-se tocar, aceitar ser iluminado por uma luz que não vem de si próprio (Sl 36,9). E ao experimentar o amor de Deus, amá-lo mais e, no Seu amor, amar a todas as suas criaturas (cf. 1 Jo 4,8). Se levarmos às últimas conseqüências a afirmação joanina de quem “quem ama conhece a Deus”, consideraremos que, no mínimo, o amor é a fé em potencial, ainda não plenamente manifestada.
Isso significa ainda que a teologia é simultaneamente uma reflexão sobre o amor (ágape-logia), que deve levar o ser humano a ser mais apaixonado por Deus e seu projeto salvífico em relação à humanidade e ao cosmos. A linguagem mais adequada para se aproximar deste mistério fontal, comporta algo específico. A teologia cristã, desde os princípios, vive a tensão entre poder falar de Deus, pois Ele mesmo se revelou (dimensão katafática), e reconhecer que todo discurso sobre o Senhor não consegue abranger a grandeza e a profundidade do Divino (dimensão apofática).
Porque é um falar sobre o Amor, a partir do Amor e visando fazer o ser humano mais amoroso, a teologia não pode lidar somente com conceitos. Toda a história da teologia no ocidente, especialmente a partir da escolástica, levou a uma grande conquista: refletir de Deus com conceitos abalizados. É algo irrenunciável para realizar a tarefa de “dar razões para nossa esperança”. Mas a teologia necessita também recorrer à história de Deus nas vidas das pessoas (caráter testemunhal) e lançar mão das analogias e da linguagem poética. Só assim, numa pluralidade de linguagens e abordagens, deixar-se-á tocar pelo mistério amoroso de Deus.
Não se trata novamente de compartimentar a teologia, reservando somente para a espiritualidade a dimensão amorosa da teologia; para a moral seu aspecto ético; e para as outras disciplinas seu caráter racional. Toda e qualquer disciplina teológica precisa estar embuída de espiritualidade, pois é um discurso que leva a conhecer e deixar-se conhecer por Deus, viver em intimidade com o Senhor, amá-lo e servi-lo. Comporta também uma dimensão ética, pois o serviço a Deus e ao seu Reino se visibiliza nas relações interpessoais e nas estruturas culturais, sócio-políticas e econômicas.
Quando se afirma que a teologia é um discurso amoroso sobre Deus, leva-se em conta que o afeto é componente essencial desta forma específica do saber. No entanto, isso não significa fideísmo, ou um discurso religioso ingênuo e adocicado pelo pietismo. A teologia não pode abandonar a coerência dos conceitos, o necessário uso da razão, de forma crítica e construtiva, e a articulação com os outros saberes humanos. Enquanto exercício da razão iluminada pela fé, é o amor lúcido, o amor pensante. Fazer teologia exige tanto o distanciamento crítico da razão quanto o envolvimento amoroso da fé. Desta tensão salutar emerge o diferencial da teologia.
É bom sinal quando um instituto de teologia, ao fazer sua avaliação anual com os alunos e professores, se pergunta: em que sentido a aprendizagem da teologia nos ajudou a conhecer, amar e servir melhor a Deus e a seu Povo. Em que aspectos auxiliou a peregrinação espiritual dos professores e dos alunos? Uma das tentações mais fortes de qualquer forma de saber, inclusive da teologia, é levar à auto-suficiência, nutrindo o orgulho e a vaidade. A lógica sutil consiste em: “porque sei mais do que os outros, sou melhor do que eles”. Assim, o conhecimento racional ocupa o lugar do conhecimento intuitivo e teologal (conhecer a Deus, ao viver a fé, a esperança e a caridade) e parece dispensá-lo. Na realidade da comunidade eclesial, os dois se completam. O (a) teólogo(a) é intérprete não somente dos dados teológicos da Escritura, na corrente da Tradição viva de sua Igreja, mas também das manifestações atuais da fé, na sua beleza e ambigüidade.
Afonso Murad
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