sábado, 20 de março de 2010

Missão Integral

Carlos Cunha, teólogo batista.

Missão Integral foi um movimento de caráter evangelical(1) que eclodiu na década de 70 liderado principalmente por teólogos e missiólogos latino-americanos. Reagindo à deformação do evangelho pelo condicionamento ideológico capitalista e a sua restrição a uma esfera “espiritual” sem compromisso com a situação do mundo, que acometia o fundamentalismo evangélico tradicional, esses pensadores propuseram um compromisso com o evangelho em todo o seu alcance, e com o homem como um ser integral. Seu lema era: “o evangelho todo, para o homem todo, pelo mundo todo”. Entre as figuras mais importantes do movimento, estavam René Padilla, Samuel Escobar, Pedro Arana, Valdir Steuernagel e muitos outros.
O evento crítico para a divulgação dessa nova perspectiva foi o Congresso Lausanne I, na Suíça, realizado em julho de 1974. Durante esse evento, que reuniu 2473 participantes e 1000 observadores de 150 países e 135 denominações, um grande debate ocorreu em torno da extensão da missão. Havia uma pressão no sentido de se identificar a missão apenas com a evangelização, de se ignorar qualquer consideração a respeito do papel que o contexto cultural e os condicionamentos ideológicos tinham sobre a teologia e a prática missionária, e de dar prioridades às vozes do primeiro mundo nas conclusões. Mas com o apoio de um dos líderes do encontro, o Dr. John Stott, os latino-americanos puderam expressar suas idéias.
A reflexão teológica da Missão Integral buscou uma compreensão adequada dos problemas da América Latina esforçando-se por promover uma reflexão teológica autóctone, contextualizada. Grande atenção foi dada à questão da pobreza e da justiça social, à questão da estratégia missionária, e à educação teológica. Nesse processo é possível observar um diálogo com as ciências humanas, como instrumento de análise para melhor compreensão da situação latino-americana, bem como com os teólogos da libertação. Observa-se também uma tendência de apoiar o socialismo contra o capitalismo com a sua teoria desenvolvimentista; de um modo geral, no entanto, há uma postura bastante crítica visando a preservação do evangelho bíblico. Como o nome indica, o movimento da Missão Integral influenciou principalmente a hermenêutica bíblica e a reflexão missiológica, havendo uma reflexão menor a respeito de outras áreas.
Com o tema “Para que o Mundo ouça a Sua (Deus) voz”, o movimento da Missão Integral foi responsável por impactar a maneira de ver e fazer missão das igrejas reformadas no Brasil.
O primeiro impacto foi produzido pela ruptura com o mito da polarização teológica entre ação social e evangelização. Para muitos grupos reformados, ação social, ou melhor, serviço social, era visto como instrumento para evangelização. Satisfaziam-se, socialmente falando, com serviços sociais assistencialistas e muitas vezes usados como “iscas” para ações proselitistas.
Estes grupos perceberam então que não se pode desvincular evangelização da ação social. Estas são duas realidades inseparáveis que se sustentam e se fortalecem mutuamente numa espiral ascendente de preocupação crescente. Evangelização e responsabilidade social são partes integrantes da missio Dei(2), portanto inseparáveis e indispensáveis na missão integral da Igreja de Jesus no mundo e para o mundo.
O segundo impacto foi sentido quando se desmistificou o mito do dualismo humano. O evangelismo protestante de missão oriundo dos Estados Unidos e da Europa limitou o conceito de salvação, achando que Cristo veio salvar apenas a alma do ser humano. De inspiração platônica, este conceito de salvação é deveras espiritualista.
O ser humano é um todo. Partindo da perspectiva bíblica, o ser humano poderia ser definido como sendo uma comunidade integrada de corpo e alma. Entretanto, a ausência de compreensão do indivíduo como ser integral, pela própria Igreja, tem levado a mesma a desvalorizar não somente o ser humano na sociedade, como também o próprio evangelho para o qual ele foi chamado a proclamar no mundo. Só existe fidelidade na evangelização quando existe fidelidade na missão integral da Igreja.
O movimento da Missão Integral não só derrubou os mitos da polarização teológica entre ação social e evangelização e dualismo humano como também legou as igrejas reformadas no Brasil a capacidade de pensar e fazer missão a partir de situações sociais concretas. A articulação entre a hermenêutica do texto bíblico e a hermenêutica da vida a partir de igrejas autóctones passou a ser o lugar teológico ideal.
Notas:
(1) Evangelical” não no sentido amplo do termo de evangélico, mas para identificar um grupo de cristãos comprometidos com o movimento da Missão Integral e a sua influência na maneira de crer e viver a fé cristã. Samuel Escobar, líder evangelical latino-americano, faz uma classificação ponderada sobre o perfil do evangelical: (1) herança teológica da Reforma – solas; (2) paixão evangelística oriunda dos avivamentos do século XVIII; (3) piedade associada a uma intensa vocação missionária herdada do pietismo; (4) postura anabatista da separação entre Igreja e Estado; (5) ética puritana e (6) dimensão social do evangelho aliada a diaconia e postura profética perante a sociedade.

(2) Conceito importante para a Missão Integral. Originalmente pensada por Karl Barth a missio Dei foi popularizado por Georg Vicedom no livro A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão, publicado pela editora Sinodal em 1996. Segundo Vicedom, missio Dei significa que a missão é obra de Deus. Ele é o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo da missão. A Igreja é instrumento de Deus, isto é, se ela se deixar usar por ele. Não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente, sobretudo no livro dos Atos dos Apóstolos. Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. O derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o enviado, sem que com essa trindade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas.

3 comentários:

  1. Carlos
    Parabéns pelo texto: simples, claro e conciso. Podemos perceber a afinidade que existe entre a Missão Integral, a Teologia da Libertação e todas as teologias e práticas eclesiais que se preocupam com a realidade social, bem como sua transformação.

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  2. "Missão Integral"

    Acabo de ler o artigo de Carlos Cuna sobre a missão integral.
    Percebe-se no artigo um avanço ou uma revolução copérica na compreensão da missão da Igreja. De uma missão preocupada com a salvação de almas, passou-se para uma missão voltada para a salvação da pessoa toda. O ser humano é um todo: alma e corpo.
    Outro avanço diz respeito a abertura da missão (teologia?) às outras instâncias sociais.
    Ainda outro avanço diz respeito a relação que deve existir entre a missão e a ação social: a missão e a ação socila são como se fossem duas faces da mesma moedas; entre elas não há dicotomia.
    De fato, o artigo mexe com a nossa tradicional compreensão de missão e convida Igreja e aos cristãos a rever o conceito e a sua prática missionária.

    Jose Armando Vicente - FAJE

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  3. MUITO BOM CARLOS, COMO SEMPRE SAIU NA FRENTE. MUITAS PESSOAS DEVERIAM LER ESTE ARTIGO, PRINCIPALMENTE PASTORES E LÍDERES. AGRADEÇO A DEUS PELA SUA VIDA.

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