terça-feira, 23 de novembro de 2010

Por que uma teologia contextualizada?

Afonso Murad
Segundo S. Bevans, fazer teologia contextual não é algo opcional, ou que diz respeito somente ao terceiro mundo. Ao contrário, o intento de compreender a fé cristã em termos de um contexto particular se trata de um imperativo teológico. Por que a teologia tem que ser contextual hoje? Fatores externos e internos contribuem para tal prioridade.
Podem-se enumerar quatro fatores externos. Em primeiro lugar, há uma insatisfação visível com as clássicas abordagens da teologia. No continente europeu, as variadas filosofias clássicas que no passado serviram de base à teologia (sobretudo à católica), não sintonizam com o pensamento contemporâneo. São insatisfatórias para interpretar a atual complexidade da existência humana. Faz-se necessário então estabelecer nova relação da teologia com os saberes atuais, para que ela recupere sua significatividade. Questiona-se a teologia como imutável, terminada, como “theologia perennis”, em nome da relevância.
Nos outros continentes, cresce também a convicção de que é necessário rever modelos culturais e formas de pensamento que estão na base da teologia ocidental. Para o teólogo da Índia R. Panikar, por exemplo, não se aceita no seu país o princípio da contradição, que está na base da lógica ocidental. Para sua cultura, as coisas podem ser e não ser ao mesmo tempo.
Em segundo lugar, reconhece-se que a teologia clássica carregou, de forma inconsciente, a ideologia dominante centro-européia. Considerou com universal aquilo que era típico de um determinado grupo humano. Assim, legitimou preconceitos e formas de opressão. Teólogo negro, protestante e norte americano, James Cone denunciou em suas obras como a teologia tradicional ignora a experiência dos negros, não ouve seus clamores e torna-os invisíveis. Outros escritores mostraram que a clássica ênfase na salvação individual e na ética intimista afetou as culturas que compreendiam a pessoa somente em relação ao seu grupo.
Em terceiro lugar, a crescente identidade das Igrejas locais demanda verdadeiras teologias contextuais. Recordando a clássica imagem de Lima Vaz, à medida que as Igrejas locais deixam de ser “espelho”, que se contentam em refletir o que determina o poder central ou copiar as práticas de outras denominações, e passam a ser “fontes”, necessitam de teologias contextuais. Trata-se de uma verdadeira descolonização da teologia.
Por fim, o quarto fator externo apontado por Bevans consiste na ampliação do conceito de “culto” e “cultura”. Até então, vigorava a idéia que existia somente uma cultura de valor, universal e permanente. Uma pessoa culta seria aquela que assimilaria os comportamentos, a visão, a forma de se expressar, a língua e manifestações artísticas dela emanadas. Hoje se compreende a cultura como conjunto de significado e de valores que expressam um estilo de vida. Reconhece-se que há muitas culturas ao redor do mundo. Assim, uma pessoa é culta enquanto se socializa e elabora de forma reflexa e profunda os elementos de determinada cultura, levando-a ao grau mais elevado possível de valores e significados. Ora, a uma concepção exclusivista de cultura correspondia a visão também exclusivista da fé cristã e da teologia. E tal concepção ser revela parcial e anacrônica.
Fatores internos à própria fé e à teologia justificam o imperativo de contextualizar a teologia. O primeiro e decisivo diz respeito à natureza encarnada do cristianismo. Deus tanto amou o mundo que compartilhou sua vida divina, fazendo-se carne (Jo 1,14; 3,16). Não de forma geral, mas de maneira particular. O filho de Deus se encarna numa pessoa humana de determinada etnia, gênero e cultura. A lição da encarnação, de se fazer particular para poder comunicar-se e dialogar, vale como figura inspiradora para a teologia contextualizada.
O segundo fator diz respeito à dimensão sacramental-simbólica da realidade. Deus não se revelou em Jesus com idéias abstratas, pretensamente universais, mas sim na realidade concreta humana. Por extensão, as coisas ordinárias da existência humana passam a ser transparência da presença de Deus. Assim, a cultura, a experiência humana, os eventos históricos, os elementos centrais que constituem os contextos, tornam-se parte integrante do processo de acolhida à revelação de Deus em Jesus.
O terceiro fator aponta para a mudança do conceito de revelação. Não se concebe mais como verdade eterna, delimitada numa linguagem divina pretensamente inalterável e imutável, pairando fora do tempo. E sim como a auto-comunicação de Deus através de gestos e palavras na história. A um conceito mais abrangente de revelação corresponde também o da teologia, como esforço de compreender e interpretar, sempre na história em mudança, ao auto-oferta divina que gera o diálogo salvífico. Uma noção relacional e interpessoal de revelação e de fé implica a necessidade de considerar o contexto no qual homens e mulheres experimentam a Deus e acolhem sua Palavra.
Portanto, elaborar teologia hoje significa refletir sobre a fé ou pensar sobre qualquer realidade humana significativa à luz da fé, de forma contextualizada, encarnada, inculturada. A teologia se faz nas teologias! Com os pés no chão das culturas, com um horizonte abrangente!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Teologia dialética de Karl Barth

O assunto da teologia — a obra e a palavra de Deus na história do Imanuel e, portanto, também seu testemunho bíblico — possui uma estrutura específica, uma ênfase e uma tendência peculiares, uma direção irreversível. O teólogo tem o compromisso, a liberdade e a vocação de lhe dar espaço também em seu processo de conhecimento, no intellectus fidei. A ação e a palavra de Deus — e, correspondentemente, os textos do Antigo e do Novo Testamento — contêm duas realidades (que só na aparência se acham lado a lado, colocadas no mesmo nível)- Elas podem ser designadas como o “sim” e o “não” divinos, anunciados ao ser humano com poder.
Podem ser qualificadas igualmente como o evangelho que ergue o ser humano e a lei que o julga e corrige; ou como a graça que lhe é ofertada e o juízo que o ameaça; ou como a vida para a qual é salvo e a morte que fez por merecer, O teólogo deve ver, refletir, expressar ambas as realidades, tanto a luz quanto a sombra— em fidelidade à palavra de Deus e à palavra da Escritura que a testemunha. Mas é justamente nesta fidelidade que ele não poderá ignorar nem ocultar o fato de a relação existente entre esses dois momentos não ser idêntica aos movimentos alternantes de um pêndulo, repetidos com uniformidade, nem aos dois pratos da balança que, carregados com pesos iguais, fiquem balançando indecisos; aí há, pelo contrário, um “antes” e um “depois”, um “em cima” e um “embaixo”, um “mais” e um “menos”.

(..) Qualificamos a teologia como uma ciência alegre. Por que existem tantos teólogos melancólicos, que andam por aí com um rosto constantemente preocupado, quando não amargurado, sempre prontos para levantar ressalvas críticas e negações?É porque náo respeitam este terceiro critério do conhecimento teológico: a economia intrínseca de seu objeto – a sobreposição do sim de Deus ao seu não, do evangelho à lei, da graça à condenação, da vida à morte – mas querem transformá-la arbitrariamente em equivalência ou até invertê-la.

O teólogo encontra sua satisfação, torna-se e é uma pessoa satisfeita, que espalha contentamento tanto na comunidade quanto no mundo, quando seu conhecimento, na qualidade de intellectus fidei, segue a estrutura que lhe é dada com o objetio de sua ciência

(K. Barth, Introdução à Teologia Evangélica. 9 ed, São Leopoldo, Sinodal, 2007, p. 60-62)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Teologia e formação presbiteral

Frei Bernardino Leers

No passado, os cursos de teologia estavam fechados dentro de seminários, mosteiros e conventos, em que estudantes, professores, formadores e confessores de uma mesma diocese ou instituto religioso conviviam juntos. Os estudantes tinham tempo para estudar e contato direto com seus professores, usavam a biblioteca da casa e tinham as mesmas revistas científicas à disposição. Comunidades fechadas, de oração, estudo e consumo, eram exclusivamente masculinas; não entravam mulheres ou empregadas e os estudantes não tinham contato regular com mulheres fora de sua casa. Ao menos para os estudantes de teologia, a vida era interna e isolada do grande mundo.
Essa situação mudou muito, com repercussão direta na vida acadêmica. Muitos institutos teológicos não são mais moradias, mas escolas, visitadas por professores e estudantes que moram separados conforme sua pertença religiosa, seminário ou convento. Acabou a exclusividade masculina celibatária, pois, em muitos cursos, o gênero feminino começou a ocupar seu lugar, como professoras, estudantes e funcionárias. Aos poucos, a produção teológica e moral perde sua unilateralidade masculina e se torna colaboração comum da Igreja, Povo de Deus, em vez de limitar-se ao clero e futuro clero.

Certamente, depois do Vaticano II, a mudança da relação entre professores e estudantes ficou clara. O professor foi garimpando o vastíssimo campo da literatura internacional de revistas e livros. Por todos os lados, novas ideias, novas visões, métodos e interpretações brotaram por cima da terra da monocultura tradicional. O progresso das ciências e as mudanças dos costumes dos povos ocidentais criaram novos problemas perante a consciência coletiva cristã que não se deixavam resolver simplesmente com armas obsoletas e linguagens antigas que deram certo ontem. Apesar de todas as resistências, a teologia da libertação fertilizou as terras latino-americanas e se espalhou em outras formas pelo mundo cristão todo. Por causa do crescimento e extensão da problemática religiosa e moral, uma velha tradição se quebrou. Por obrigação interna das ciências teológicas, um único professor para dar a matéria toda se tornou frustrante. A especialização se impõe, com o risco de perder a visão sobre a globalidade dos problemas que a sociedade apresenta. Sem a tranquilidade da posse doutrinária, o profissional se tornou um eterno aprendiz, que precisa estudar muitos sacramentos oficiais e entrar no terreno extenso das ciências humanas.
Também a situação dos estudantes mudou muito. Morando fora do instituto teológico e vivendo, muitas vezes, em casas comuns e abertas entre famílias comuns, costumam ter trabalhos pastorais fora, encontrando-se com a vida social no bairro ou cidade, com mistura normal de homens e mulheres de todas as idades e condições, com suas qualidades e sombras. Essa expansão da rede de relações, geralmente de escala pequena, vem acompanhada com todo o campo variado da TV, de programas, novelas e filmes, textos de cantores, mensagens da Internet, vídeos, revistas ilustradas populares e tanto mais. Por esses canais de comunicação e pelos contatos e encontros com grande variação de pessoas, o "mundo" joga uma massa confusa e controvertida de informações nas cabeças. Na atualidade, estudantes de teologia não ficam alheios à situação complexa da sociedade de que participam com seus contrastes, discriminações, exclusões e anarquia de valores e estilos de viver, embora o cristianismo seja ainda a bandeira para encobrir a realidade de cada dia.

O material humano que se apresenta para estudar teologia é mais variável do que no passado. Deixando de lado as diferenças de nível intelectual e de formação escolar já recebida, são, principalmente as motivações dos estudantes que merecem atenção. Se leigos, homens, mulheres ou religiosas escolhem estudar teologia, eles se dedicam para chegar à maior compreensão, querem aprofundar sua fé e se orientar melhor no caos da problemática religiosa e moral que a sociedade e a vida apresentam. Gostando e interessado ou não, o candidato ao presbitério arrisca considerar o estudo apenas como uma passagem inevitável para chegar à realização de sua vocação ou sonho de ser padre. Os anos de teologia são um corredor composto ao lado da formação espiritual em sua comunidade vivencial, seus interesses pessoais e seus trabalhos pastorais no sentido mais largo da palavra. Sem diploma e deveres acadêmicos cumpridos, não haverá a festa da ordenação sacerdotal. O estudo da teologia há de dar também habilitação profissional para funcionar como ministro da Igreja. Mas o estudo sério serve em primeiro lugar para o autoenriquecimento pessoal, para a boca falar o que enche o coração. Esse “encher” exige concentração, tempo e perseverança nos estudos.

Estudar teologia exige tempo e esforço. Na sensibilidade dos tempos atuais, o tempo passa depressa demais e ninguém tem tempo para nada. Não basta ouvir aulas, atender a chamada e pôr cruzinhas no Diário de Classe. Fazer tempo e gastar tempo para interiorizar o conhecimento teológico na vida pessoal são responsabilidades que se impõem mais do que no passado com seus compêndios de teologia dogmática e teologia moral. Evangelizar os outros é um belo ideal. Mas não funciona sem o evangelizador se evangelizar a si mesmo, arraigar sua fé e expressá-la melhor em sua própria vida e convivência. O povo não é tão ignorante que não é capaz de avaliar a autenticidade religiosa e moral de seus pastores. Firmeza e estabilidade pessoal não se formam de um dia para outro. Para transmitir eficazmente a mensagem da Igreja ao mundo contemporâneo, a reflexão teológica em processo atual precisa ser absorvida e fertilizar a própria vida. Onde o Concílio Vaticano II abriu de novo a convivência, o diálogo e a colaboração com o mundo atual, mistura do humano, sub-humano e desumano em toda sua variedade, o estudo preparatório de teologia para o futuro sacerdotal exige mais, muito mais esforço e concentração. Pela dinâmica interna e crescente complicação da vida do povo, a situação do aprendiz de teologia se torna paradoxal.
De um lado, dispõe de muitas informações e publicações da teologia e outras ciências, doutro, amadurece mais lentamente na medida em que a sociedade e a vida eclesial se complicam mais e a “clientela” do clero tem mais problemas existenciais e não acredita mais tanto em “o padre falou”. Se o clero quiser ser mais do que funcionário ou administrador da “empresa” eclesial, o esforço disciplinado nos estudos teológicos preparará um homem profundamente religioso e honesto para se comunicar com o povo dentro e fora das igrejas.

sábado, 29 de maio de 2010

Sinfonia da Cência



Canção sobre a ciência, com frases de 12 cientistas: Michael Shermer, Jacob Bronowski, Carl Sagan, Neil deGrasse Tyson, Richard Dawkins, Jill Tarter, Lawrence Krauss, Richard Feynman, Brian Greene, Stephen Hawking, Carolyn Porco e PZ Myers.

Veja mais em: http://symphonyofscience.com/

domingo, 2 de maio de 2010

Teologia como ciência

A teologia e as ciências são realidades históricas. Sua relação depende fundamentalmente do conceito que se tem de ciência e de teologia nos diferentes momentos da história. Varia, portanto, segundo se desenvolve a consciência humana e se modificam as condições sociais, cosmovisões, ideologias, interesses, em que tal relação se situa.

a. Submissão da ciência à teologia
Teologia e ciência viveram longa lua-de-mel ou, mais exatamente, matrimônio patriarcal de fidelidade. As ciências dependiam da teologia que desempenhava o papel de rainha. Santo Tomás, nesse contexto, define com rigor a relação entre teologia e ciência, servindo-se do conceito aristotélico de ciência e readaptando-o de tal modo que a teologia lhe realiza as condições básicas.
Ciência define-se, neste sentido, como conhecimento certo e sempre válido, resultado de dedução lógica. Certo, porque procede de evidências primeiras e indemonstráveis. Dedutivo, porque articula as conclusões com os princípios universalmente válidos por meio de raciocínios necessários. Perfeito, porque atinge as coisas em seus princípios essenciais e necessários. Por conseguinte, ciência pretende conhecer, de maneira certa, as causas ou razões de ser.
Teologia diz-se ciência, não no sentido de ter evidência imediata de seus princípios, a saber, das verdades reveladas, mas enquanto ciência subordinada à ciência de Deus. Os princípios da teologia só tornam-se evidentes na ciência mesma de Deus, i. é, na ciência que Deus tem de si. A teologia recebe da ciência de Deus — ciência subordinante — os seus princípios. Está em continuidade com essa ciência de Deus, em que as verdades reveladas participam da evidência divina pela revelação e fé. É conhecimento certo e dedutivo, mas a seu modo.
A teologia, como ciência subalterna, subordina-se à ciência superior de Deus e dos santos. Adquire, por isso, mais dignidade que aquelas que se fundam em princípios conhecidos à luz natural do intelecto e por si evidentes.
Estribando-se na própria ciência de Deus, que não se pode equivocar nem pode enganar-nos, toda verdade teológica se faz normativa para as outras ciências. Em qualquer conflito de intelecção, a teologia nessa compreensão levava vantagem inegável. Tutelava, por isso, tranqüilamente todos os outros saberes humanos.

b. Surgimento dos conflitos
Com o advento da ciência moderna com Copérnico, Galileu Galilei e Newton, nascem os primeiros conflitos entre teologia e ciência. Aparece claro o choque entre as pretensões de ambas. A teologia, acostumada ao regime de cristandade, oferecia um sistema de representação completo e global da realidade, apoiado sobre a base da fé, como princípio integrador e totalizador. As ciências modernas invertem o método. Partem da experiência verificável, matematizável e tentam estudar os fenômenos, as causas segundas, em termos de leis físicas, constantes, universalmente válidas, independentemente do aval de outra ciência. Sua verdade se apóia na racionalidade da experiência que se deixa repetir e verificar em determinadas condições. E suas verdades são pensadas em relação às coordenadas que elas mesmas se traçam. A certeza já não se fundamenta nem na autoridade da Escritura nem na de filósofos da Antiguidade, mas em sua verificação experimental.
O conceito moderno de ciência é, por conseguinte, outro. Os conhecimentos, que formam o corpo teórico das ciências, adquirem-se por meio de métodos muito precisos de experimentação, nos quais as afirmações se provam imediatamente, podem ser verificadas e por isso admitidas universalmente, desde que se respeitem as condições do experimento. As ciências pretendem ter um controle de todas as pro-posições pela experimentação. Seus conhecimentos são elaborados e controlados por procedimentos de demonstração e verificação.

Evidentemente, com esse conceito de ciência, viveu-se um primeiro momento de mútua condenação. A teologia não cumpria essas condições de ciência e, por isso, era rejeitada como tal. Por sua vez, a teologia adjudicava ao orgulho humano esta pretensão de absoluta autonomia. O processo contra Galileu Galilei se fez simbolicamente o marco deste conflito. Fato histórico assaz conhecido, que finalmente encontrou seu desfecho com o reconhecimento por parte da Igreja de seu equívoco e pela plena reabilitação do cientista italiano.

c. Solução intermédia da harmonização apologética
Em seguida, buscou-se harmonização apologética. Mantendo-se enquanto possível as afirmações teológicas, bíblicas ou outras, idênticas em sua materialidade literal, de um lado, e as afirmações científicas que pareciam contradizê-las, de outro, torciam-se os textos a tal ponto que se encontrava uma harmonização. Nesta linha, tornou-se famoso o livro até hoje reeditado: E a Bíblia tinha razão. Tal solução precária não resistiu à crise provocada pela consideração epistemológica sobre os diferentes tipos de saber.

d. O momento da ruptura: positivismo da ciência
Entrou-se em nova fase de relacionamento. Da “bela unidade” tradicional passando pelo conflito, chegou-se ao divórcio com liberdade total para cada cônjuge. As ciências, independentemente da teologia, vão fixando sua episteme própria, e a teologia esforça-se por ser ainda reconhecida com certa dignidade no consórcio das ciências. Inverte-se o cenário. Antes as outras ciências mendigavam o beneplácito da teologia. A filosofia se dizia serva da teologia (ancilla theologiae). Agora a teologia debate-se para ser considerada com seriedade e não relegada ao mundo das fábulas.
Cada mundo de saber explicita sua verdade própria, intrasistêmica, autônoma, irredutível a qualquer outra. Ela se torna instância crítica de si mesma e não de outras, nem se deixa criticar por outras. Reina visão positivo-hermenêutica no sentido de que cada interpretação científica delimita ela mesma seu mundo de verdade, seus parâmetros, sua objetividade. As ciências exatas reivindicam a explicação dos fenômenos por razões imanentes e verificáveis em condições estabelecidas. As ciências humanas posicionam-se no universo do sentido das coisas. O modelo principal, cabia às ciências positivas, exatas, experimentais. As outras se moldavam por elas e eram tanto mais ciência quanto mais se aproximavam desse modelo positivista e empirista, que reduzia a ciência ao experimental e a experiência ao âmbito do sensível, relegando para o mundo subjetivo e fabuloso tudo o que transcendesse tal esfera sensível e constatável. Nesse sentido, ciência se dizia aquele conjunto de teses formado unicamente com o auxílio de métodos precisos de experimentação. As afirmações provam-se imediatamente por sua aptidão em suscitar aplicações concretas que efetivamente são admitidas por todos.

Esta visão positivista marcou a compreensão vulgar de ciência, como se ela fosse baseada na evidência sólida e irrefutável, e como se suas descobertas fossem inquestionáveis com a pretensão de desvendar todas as áreas da experiência humana. Seria questão de tempo. Ela gozaria de uma neutralidade irrefutável, já que o cientista abordaria a realidade sem nenhum pressuposto.
Evidentemente nesse quadro da ciência moderna, a teologia faz pobre papel. Tendo como objeto Deus, realidade transcendente e inexperimentável no sentido positivista, ela é alijada do mundo científico. O filósofo positivista A. Comte relegara a religião — o mesmo vale para a teologia — ao mundo da infância da humanidade e das pessoas. A idade adulta da razão considera-a definitivamente superada como toda possível fé em Deus.

e. Momento hermenêutico
A discussão vai mais longe. A dúvida, a suspeita, a crítica bateram às portas da pretensão objetivista e empirista da concepção positivista da ciência. A experiência científica, exemplar máximo do dado objetivo, é envolvida pela suspeita hermenêutica e ideológica. Hermenêutica, ao afirmar-se que não há puro dado. Todo dado é interpretado. A experiência tem a face objetiva da presença do dado, mas também implica a percepção desse objeto pelo sujeito que o penetra e o exprime em linguagem. E, ao fazer isso, interpreta-o. Suspeita ideológica, porque todo conhecimento reflete interesse. Rui o universo frio e asséptico do conceito positivista de ciência. Por revelar visão interessada e querer passar por absoluta e apodítica, torna-se equivocada.
Institui-se a distinção entre o êxito instrumental da ciência que permite prever corretamente o funcionamento do mundo natural e as teorias científicas pelas quais os cientistas descrevem tal funcionamento de modo complexo e objetivo. Enquanto há unicidade e neutralidade da ciência no controle e previsão do comportamento de nosso mundo, há diversidade de teorias explicativas, conflitivas entre si e carregadas de valor. Se a ciência instrumental se rege pela perfeita adequação ao mundo físico, as teorias, por sua vez, se definem pela coerência interna e pelo fato de obter consenso entre os cientistas.
Com efeito, a multiplicidade de possíveis interpretações impede de recorrer à correspondência empírica pela via da verificação. Questiona-se então a objetividade absoluta e impessoal das teorias científicas.

Caminha-se, assim, para novo patamar de relação. Toda experiência, também a científica, ao converter-se em teoria, reflete a interpretação do sujeito, traduzida em determinada linguagem. Este sujeito pode ser a comunidade científica, que se relaciona com o objeto mediante modelos, categorias ou paradigmas. Ela os constrói para captar e interpretar o dado em discurso científico. Ora, sob este aspecto, todas as ciências, inclusive a teologia, sofrem esse mesmo procedimento. Submetem-se a este mesmo estatuto epistemológico. Em outros termos, toda ciência interpreta modelarmente a realidade, seja explicando-a, seja dando-lhe sentido, ao compreendê-la. Explica interpretando, interpreta explicando.
A visão positivista pretendia pôr a subjetividade totalmente entre parênteses. Entretanto, a subjetividade entra no centro da concepção de ciência. Não se trata de um sujeito abstrato, nem de uma razão pura, mas da coletividade pesquisadora e geradora de ciência. Há uma subjetividade coletiva inserida na história, articulada num horizonte sociopo-lítico e movida por interesse.

Mais. As teorias de W Heisenberg e N. Bohr levam adiante a reflexão, sobretudo em relação ao mundo atômico. Não se consegue nenhuma previsão de comportamento global nesse microcosmo. As partículas não podem ser conhecidas em si mesmas, mas somente em sua relação com o observador. A ocular do observador define também o fenômeno e não simplesmente o capta.
A comunidade científica trabalha com paradigmas, que exprimem o conjunto de pressupostos conceituais e metodológicos de determinada tradição científica e a partir dos quais os fenômenos são interpretados. Quando, porém, novo fenômeno descoberto relevante já não cabe dentro desse paradigma, elabora-se outro diferente daquele vigente, sob o influxo da intuição genial de algum cientista. Acontece uma revolução científica, como sucedeu nos casos da passagem do paradigma ptolomaico para o newtoniano, e deste para o einsteiniano.
Os interesses das ciências exatas e das ciências humanas revelam-se diversos. Mas são interesses. As primeiras buscam um acúmulo de informações com o objetivo de dominar com êxito a natureza e seus processos. E, ao lado desse interesse geral, somam-se outros interesses ainda mais ideológicos. Quando a comunidade científica americana investiu para produzir a bomba napalm, certamente esteve presente o interesse geral de domínio das leis químicas. Mas por que precisamente a bomba napalm e não outra composição química? Isso já não se explica, nem pela pura objetividade das leis químicas, nem pelo interesse geral de conhecimento e domínio da natureza, mas revela conexões econômico-políticas, ligadas à guerra do Vietnã.

Os interesses epistemológicos das ciências humanas aparecem mais claramente vinculados com o objetivo de incrementar, ampliar a interação e comunicação entre as pessoas dentro de um universo de sentido. Elas usam modelos e paradigmas que permitem ao ser humano situar-se em suas relações consigo, com os outros e com o mundo, por meio do conhecimento de seus mecanismos e de seu sentido em vista de construir vida mais humana. Evidentemente, a liberdade humana pode perfeitamente inverter o interesse fundamental que justifica o nome de “ciências humanas”, ao orientar seu estudo e pesquisa no sentido de ampliar a exploração sobre o ser humano (...)
A teologia utiliza também modelos e paradigmas para entender seu objeto central, a saber, a autocomunicação de Deus na história em ações e palavras. Tem o mesmo estatuto epistemológico no sentido de aproximar-se da revelação de Deus com categorias, matrizes, paradigmas interpretativos, hauridos da filosofia e das experiências humanas. Além disso, deixa-se mover pelo interesse maior de interpretar a Palavra de Deus para dentro da história humana em vista de sua libertação. Infelizmente, também a liberdade humana pode transgredir esse estatuto emancipatório da teologia, como ciência humana hermenêutica, e transformá-la em uma teia do processo de dominação. A clareza da percepção, não só dessa possibilidade, mas de sua concretização em determinadas categorias teológicas, levou J. L. Segundo ao projeto teológico de “Libertação da teologia”.

A teologia, fiel ao seu propósito último e fundamental de ser libertadora, intenta dialogar com as outras ciências exatas e humanas no sentido de mutuamente se criticarem e se estimularem em vista da concretização do projeto emancipatório, sentido último de toda ciência feita pelo ser humano. Nesse movimento de compreender o mundo, criando modelos interpretativos e transformadores, e de dar-lhe sentido, as ciências podem dialogar com a teologia, cujo único escopo é desvelar o sentido último e transcendente da vida humana. Pois ela priva com o mistério de Deus, realidade última e fundante de todo sentido e de toda ciência. A mais positiva e exata ciência remete, em última instância, ao mistério do ser, do real — Deus —, como um não-saber que sustenta todo saber. E a teologia vive desse e para esse mistério. Nesse nível se restabelece plenamente o diálogo entre teologia e ciência.

f. Conclusão
A teologia cumpre determinadas funções da ciência, mas que também não responde a outras. Diz-se ciência de maneira original. A ciência, enquanto voltada para o mundo do fenômeno, do constatável, do verificável, e, portanto, sujeita ao processo de verificação e comprovação de suas verdades pela via da experimentação ou da simulação, não corresponde à natureza da teologia.Uma vez aceita a pluralidade dos jogos lingüísticos, dos diversos saberes, das diferentes maneiras de conduzir o próprio método, de pautar seu rigor teórico e de fazer parte de uma comunidade científica como expressão moderna de ciência, a teologia faz-lhe pleno jus.

João Batista Libanio, da obra: "Introdução à Teologia", Loyola, 2o10, 4ed, cap.2.

terça-feira, 30 de março de 2010

CASA DA TEOLOGIA NA MÍDIA

A REVISTA ELETRÔNICA DO INSTITUTO HUMANITAS DA UNISINOS (IHU), PUBLICOU UMA ENTREVISTA COM AFONSO MURAD E PAULO ROBERTO GOMES, SOBRE O LIVRO : “A CASA DA TEOLOGIA”. CONFIRA!

IHU On-Line - Por que "A casa da Teologia" é uma introdução ecumênica à ciência da fé?
Paulo Roberto Gomes - O livro "A Casa da Teologia" é uma obra ecumênica pelo fato de ter sido escrita por dois católicos com experiências na linha do Ecumenismo (Afonso Murad e Paulo Roberto) e por contar com a contribuição de uma teóloga batista (Súsie Ribeiro) com experiências ecumênicas também. Desde o princípio, procuramos discutir todos os capítulos e cuidar da linguagem para que contemplasse católicos, ortodoxos, protestantes históricos e pentecostais. O capítulo sobre a história da Teologia Católica, Ortodoxa e Evangélica demonstra esta preocupação. O pastor Geraldo Cruz da Silva contribuiu muito com suas observações na parte histórica. Todo o material escrito era cuidadosamente lido por cada um de nós, corrigido e debatido em grupo para tornar o texto mais fluente e rico. Tivemos a oportunidade de submetê-lo à leitura de outros teólogos e aplicá-lo em sala de aula. As observações desses teólogos e alunos enriqueceram ainda mais a nossa obra.
Afonso Murad - Para nós (Murad, Paulo Roberto e Susie) escrever este livro foi uma tarefa árdua e saborosa. Eu já havia elaborado um outro livro de Introdução à Teologia (Editora Loyola) com meu mestre, João Batista Libânio. Esta primeira obra está na quarta edição, e tem servido a muitos professores e alunos de Teologia no Brasil. Então, pensei em atingir outro público: os leigos e leigas que frequentam os cursos de Iniciação à Teologia, em diversas modalidades. Na primeira conversa com Paulo Roberto, quisemos estender este horizonte para as Igrejas cristãs, favorecendo uma compreensão da Teologia para além dos estreitos limites confessionais. Então convidamos Susie, teóloga batista, que havia sido minha aluna. Susie tem uma boa experiência de trabalhar em Faculdade de Teologia Evangélica, integrando a perspectiva das várias Igrejas. No trajeto de escrever e corrigir o livro, recebemos a contribuição de estudantes e professores de algumas Igrejas cristãs. Isso nos enriqueceu muito. Foi uma aprendizagem enorme! E, ao final, temos uma obra ampla de teologia cristã, em linguagem acessível, que suscita diálogo.

IHU On-Line - Em que aspectos essa obra traz uma abertura ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso?
Paulo Roberto Gomes - Ao abordarmos a pluralidade de teologias como: feminista, mulherista, negra, africana etc., tivemos a preocupação de falar do diálogo inter-religioso e da teologia das Religiões como necessárias para quem quer começar a estudar a Ciência da Fé. Como se trata de uma obra introdutória, não pudemos nos alongar muito. Tratamos as teologias de todas as Igrejas (luteranas, calvinistas, batistas, metodistas, pentecostais) com muito respeito, mostrando suas concepções a respeito da riqueza do Cristianismo. A obra tem a edição das Paulinas com a coedição da Sinodal dos luteranos. Gostaríamos muito que fosse um serviço às diversas Igrejas, abrindo perspectivas de sair de uma concepção fundamentalista para um dialogo mútuo e enriquecedor para todos.
Afonso Murad - Em vários aspectos. Em primeiro lugar, porque ela foi elaborada com os olhares de diferentes Igrejas. Além disso, contemplamos assuntos que normalmente não se encontram em outros livros. Por exemplo: raramente um livro de introdução à teologia católica contempla a história da teologia protestante. Há uma igual dificuldade nos livros de introdução, escritos por evangélicos e pentecostais, de apresentar o tema do método teológico, e de refletir sobre a utilização de outros saberes na elaboração da ciência da fé. E existe ainda a questão espinhosa da relação entre Bíblia e Tradição. Resolvemos abordar estes temas de forma aberta e respeitosa, mostrando as diferenças e os possíveis pontos em comum. Um dos grandes problemas para o diálogo ecumênico e inter-religioso é que não se conhece a visão do outro a partir do seu ponto de vista. Então, este livro se presta a informar e refletir, sem ter a pretensão de doutrinar ninguém. Assume uma postura clara: a teologia cristã é um saber apaixonado, que parte da experiência da fé, vivida em comunidade. Mas esta paixão é lúcida. Quer compreender em que (ou em Quem) crê, e como se dá este processo. Por isso, necessita pensar, com instrumentais teóricos adequados. A identidade não se perde em contato com o outro, mas se enriquece. Numa sociedade plural, a teologia também necessita ser plural.

IHU On-Line - O que a metáfora da casa revela sobre a Teologia em nossos dias?
Paulo Roberto Gomes - Escolhemos a metáfora da casa para tornar mais leve a leitura e pelo fato da casa ser um lugar do convívio, da intimidade e do cultivo do relacionamento. Nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, a casa é um lugar teológico de grande relevância na aprendizagem com o mestre, na convivência e no se tornar discípulo do Reino. A metáfora da Casa revela que nossa teologia deve ser hoje mais saborosa, construída nas diversas relações entre Igrejas, mulheres e homens, religiões, entre o público e o privado, um diálogo respeitoso com os mais variados interlocutores, procurando dar respostas ainda que provisórias para o serviço do Povo de Deus.
Afonso Murad - A metáfora da casa nasceu da tentativa de apresentar de uma forma poética os vários assuntos que compõem uma Iniciação à Teologia, em perspectiva ecumênica. Visitar a casa de um amigo é lentamente penetrar na sua intimidade, partilhar de algo que lhe é próprio. Assim acontece com os diversos capítulos do nosso livro. O leitor, de forma gradual, vai entrando no mundo da teologia. Chega na varanda, onde se descortinam as expectativas e desejos dos estudantes. Entra na sala de visita e começa a estabelecer relação com o saber teológico. Passa pelos corredores da história, e vai à cozinha, o lugar familiar. Visitando diferentes cômodos da “Casa da Teologia”, o leitor se sente parte dela. Por fim, a teologia reconhece que não basta a si própria. É necessário ouvir e dialogar com as grandes questões da humanidade: sociais, étnicas, culturais e ecológicas. Por isso, a metáfora nos leva ao capítulo final: “A casa e a cidade”. Por fim, nós cremos que a teologia é uma casa em construção. Então, criamos o blog: http://www.casadateologia.blogspot.com/, para apresentar bibliografia recente, novos artigos e até pequenos vídeos, além de favorecer a interlocução com o(a) estudante de Teologia. A “casa da teologia” é nossa casa. Bem-vindo!
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_destaques_semana&Itemid=24&task=detalhes&idnot=2033&idedit=15

Filosofia e Teologia em Ignacio Ellacuría

Elismar Alves dos Santos - Doutorando em Teologia pela FAJE, Belo Horizonte

Ignacio Ellacuría reflete sobre a necessidade de sistematizar uma filosofia a partir da realidade da América Latina. Apresentaremos aqui os principais traços de sua filosofia, voltada para a realidade libertadora, tendo como referencial teórico os artigos: “Funcion Libertadora de la Filosofia”,
“El objeto de la filosofia” e “Filosofia de la realidad histórica”. Seus escritos visam contribuir na formação da consciência social dos cristãos da América Latina, para a qual trabalhou incansavelmente. O autor foi assassinado por um grupo paramilitar de El Salvador, em 1990.

O caráter libertador da Filosofia
O teólogo e filósofo Ignácio Ellacuría desenvolve uma reflexão atual sobre o papel da filosofia nas relações humanas em vista da promoção da dignidade do ser humano. Trata-se de uma filosofia concebida como busca pela verdade em sintonia com a liberdade. Lembrando, porém, que os escritos de Ignácio Ellacuría, tanto na área da teologia como da filosofia refletem acerca da situação da opressão e da desigualdade social na América Latina. O autor lembra que na América Latina existe uma Teologia própria conhecida como Teologia da Libertação. Porém, carece, ainda, de uma Filosofia com o “rosto”da América Latina, enquanto originada da sua própria realidade histórica. Uma razão pela não existência ainda de um método filosófico de origem Latino Americano, na avaliação de alguns estudiosos, pode ser este: “devido ser um continente nacionalista, indigenista, autóctonas, etc”. (Ellacuría, 1985, p. 46).
A proposta filosófica de Ellacuría tem como meta abordar a filosofia na condição de meio que proporciona a liberdade através da experiência da cultura e das estruturas sociais, dentro da realidade da pessoa humana, onde ela precisa realizar-se em espírito de liberdade. A liberdade é tema importante na filosofia desse pensador. Assim, ele explica que a filosofia desde os pré-socráticos, procura refletir sobre a liberdade. Porém, não se trata de uma liberdade abstrata, mas sim, prática na história do ser humano.
Tendo subjacente o artigo de 1985, “Funcion Liberadora de la Filosofia,” I. Ellacuría parte de uma constatação: a América Latina por ter vivido um contexto de opressão não foi possível criar uma tradição filosófica. Ele considera a filosofia responsável por conceder “uma capacidade crítica ”ao ser humano diante das ideologias. Ellacuría recorda que a filosofia é uma poderosa “arma” no combate a opressão social, pois leva o indivíduo a criar consciência do seu papel enquanto agente de transformação. Assim, recorda que a filosofia se distingue historicamente, por sua criticidade.
A filosofia busca, entretanto, os fundamentos racionais que o indivíduo necessita para posicionar-se diante de seu contexto histórico. Com isso, “a função libertadora da filosofia é exigida então, por sua própria condição de criticidade e fundamentação e por sua vez, obriga ao fazer filosófico buscar uma fundamentação crítica”. (Ellacuría,1985, p. 51). A reflexão filosófica de Ellacuría visa chamar a atenção para a importância da emancipação do sujeito. O teólogo lembra que na década de oitenta, dever-se-ia pensar nos processos sócio-econômicos que a sociedade estava passando, de opressão pelos regimes totalitários, como pela gritante desigualdade social nos países classificados como “terceiro mundo”. Nessa perspectiva ele pontua que se deveria falar da “autodeterminação pessoal do sujeito livre e consciente”. (Ellacuría, 1985, p.53).
A filosofia deve ser utilizada como referencial teórico de enfrentamento diante da realidade de desigualdade social, pois ilumina, interpreta e transforma a pessoa humana. Está subjacente ao seu pensamento, a capacidade da filosofia enquanto meio que proporciona a práxis. Em outras palavras: “O homem tem uma forma peculiar de enfrentar-se com a realidade que é a habilidade intelectiva, que independentemente de sua origem, natureza e condicionamentos, estruturais, têm sua peculiaridade que deve ser estudada não só para conhecer o que é o homem, mas para anteriormente poder fazer um uso crítico de sua própria inteligência.” (Ellacuría,1985, p.54).

Entretanto, adverte que esta possibilidade da filosofia em proporcionar a liberdade através da inteligência serve tanto para libertar o homem como também para oprimi-lo. Se a filosofia faz parte da condição existencial do ser humano, então ela contempla a realidade social do indivíduo. Lembrando que “homem, sociedade e história são três realidades vinculadas entre si, porém cada uma tem sua peculiaridade”. (Ellacuría, 1985, p.54). A temática da história na filosofia encontra espaço fecundo em suas reflexões, pois ele propõe uma filosofia da realidade histórica, como ponto nefrálgico de seu método filosófico. Esse assunto será evidenciado no segundo artigo do autor, em relação ao objeto da filosofia. A filosofia é uma busca transcendental, porém vinculada às realidades transcendentes, na historicidade do ser humano.
A filosofia contempla a historicidade da pessoa. Com isso, ele faz lembrar que a razão tem um caráter concreto, ou seja, a intenção presente na razão é tomada como figura concreta em seu modo formal de estar lançada ao real. Retomando o que foi dito sobre o papel da práxis, pode-se dizer que a práxis não é um conceito psicológico, social ou ético, mas um conceito estrutural. Esse conceito estrutural da práxis encontra-se presente na realidade histórica do indivíduo. “A filosofia como momento teórico desempenha sua capacidade libertadora e ela mesma se potencia como tal ao recuperar consciente e reflexivamente seu papel como momento teórico adequado da práxis histórica”. (Ellacuría, 1985, p.56). A práxis contempla o caráter estrutural-social e a libertação precisa ter também “um caráter estrutural-social”.
Considerando que a filosofia para Ellacuría precisa encontrar-se encarnada na realidade social e histórica, surge a possibilidade de se pensar uma filosofia “cristã”, como proposta nova em favor do ser humano. A filosofia cristã teria como meta instalar seu caráter filosófico autônomo no lugar privilegiado da verdade da história, em sintonia com a experiência da Cruz, pois a Cruz remete-nos a esperança libertadora. A filosofia cristã, nessa perspectiva, identifica-se com a história de crucificação do povo e com toda forma de dominação e exploração, sobretudo, na realidade da América Latina.
Ignácio Ellacuría no artigo “Funcion Liberadora de la Filosofia” de 1985 lembra do contexto no qual emergiu a Teologia da Libertação. A mesma surgiu devido a um dilema na área da política, da realidade social e religiosa, em que a opressão e a desigualdade social contribuíram para se pensar numa nova hermenêutica teológica. Ele defende a criação de um estilo filosófico Latino-Americano, partindo da experiência histórica dos diversos rostos crucificados pela desigualdade social, tendo por meio da filosofia um suporte crítico e libertador. Essa seria a função da “Filosofia da Libertação”. Vejamos agora como ele compreende o objeto da filosofia, tendo como referencial dois escritos de sua autoria: “El objeto de la filosofia” de 1992 e “ Filosofia de la realidad história”de 1990.

O objeto da Filosofia
A realidade social está metafisicamente entrelaçada na história. Para tanto, ele fala da inter-relação entre natureza e história. Sobre esse ponto escreve: “não se pode tratar da natureza sem referir-se a história, nem do homem sem referir-se a sociedade e reciprocamente”.(Ellacuría, 1992, p.64). Porém, abarcando a totalidade como objeto, a filosofia depara-se com uma questão intrigante: “como se configuram a peculiaridade e a totalidade em cada uma das coisas?” (Ellacuría,1992, p.64). Por isso, diz que o objeto da filosofia deve ser tomado como um campo vasto, porque a filosofia deve configurar-se a todas as realidades existentes. Essa seria segundo Ellacuría o primeiro objeto formal da filosofia: sub ratione totius.
Mesmo falando em objeto da filosofia no “sub ratione totius”, Hegel e Marx salientaram a importância da unidade do objeto filosófico. Mas, Ellacuría pontua precisamente que o “objeto” da filosofia precisa contemplar a realidade como um todo sistemático, pois a realidade é um todo dialético. Se em Hegel a busca pelo objeto da filosofia diz respeito ao “sentido do ser”, em Marx configura-se pelos antagonismos sociais. Ellacuría diz que não se trata de fazer uma separação entre Hegel e Marx, mas colocar em discussão a questão do “objeto” da filosofia para ambos. Comumente afirmar-se que para Hegel tal objeto é o “ser”, porém para Marx são as realidades sociais.
A questão consiste em observar que Ellacuría serve-se da filosofia de Hegel e das considerações de Marx para pensar e estruturar o seu próprio “objeto”da filosofia. Ele lembra que tanto para Hegel como para Marx, a realidade é concebida como algo dinâmico e processual. Assim, após expor a matização do objeto da filosofia em Hegel e Marx, Ellacuría explica que segundo Xavier Zubiri, “ o objeto da filosofia é o todo da realidade dinamicamente considerado”. (Ellacuría, 1992, p.71).
Para Zubiri não há distinção entre “metafísica geral”e “metafísica especial”. A filosofia nessa perspectiva contempla o todo da realidade. Então, o objeto de estudo desse pensador, segundo Ellacuría é a “realidade intramundana”. Ele explica que Hegel desenvolve uma filosofia idealista; Marx oferece um método cientifico – “materialista” e, Xavier Zubiri discorre em sua filosofia acerca de um método filosófico – “realista”. São abordagens diferentes com o mesmo objetivo: compreender a realidade. Entretanto, Ellacuría adverte que “a realidade é sempre dinâmica e seu tipo de dinamismo corresponde ao tipo de realidade”. (Ellacuría,1992, p.76). Em outras palavras, não há realidade estática. A realidade é originalmente dinâmica.
Ellacuría postula o objeto da filosofia como realidade histórica. Vejamos em que consiste essa realidade histórica. Primeiramente trata-se de uma realidade assumida no reino social através da liberdade: é a realidade mostrando suas virtudes e possibilidades. A realidade histórica engloba todos os tipos de realidades, isto é, não há realidade histórica sem realidade material; sem realidade biológica; sem realidade pessoal e; sem realidade social. “Porque ‘realidade histórica’ se entende a totalidade da realidade tal como se dá unitariamente em sua forma qualitativa, mais alta e essa forma específica de realidade que é a história, onde nos dá não somente a forma mais alta de realidade, mas o campo aberto das máximas possibilidades do real”. (Ellacuría,1992, p.84).
Por isso, Ellacuría concebe como objeto da filosofia a “realidade histórica”. Mas não se trata de conceber a realidade histórica desvinculada da pessoa humana. Nessa proporção, não há simplesmente história, mas realidade histórica. Na obra “Filosofia de la realidad histórica” de 1990, encontra-se uma explicação sobre a relação entre história e natureza material: “a história surge da natureza material e permanece indissoluvelmente enraizada a ela”. (Ellacuría,1990, p.48). Os fatores materiais são decisivos na configuração dos grupos humanos e em seu modo de viver. A materialidade da história concebida como espaço e tempo justifica-se na existência da pessoa. O espaço e o tempo remetem-se a vida.
Assim, espaço e tempo são materializados nas realidades intramundanas. Observa-se que o autor toma o Cosmo como unidade constitutiva da realidade: “cada coisa é ‘coisa-de’ um todo, dos cosmos; constitui um construto, um sistema unitário, que é o cosmos”. (Ellacuría, 1990, p.49). A realidade remete-se a algo que se manifesta em si mesmo tendo no dinamismo seu ponto central. Logo, o objeto da filosofia nesse contexto é a realidade histórica. A realidade desvela-se na realidade complexa, coletiva e sucessiva “da humanidade, e indica que a realidade histórica pode ser o objeto da filosofia”. (Ellacuría, 1992, p.473).
Pessoa e realidade histórica no sistema filosófico do autor não se contrapõem, mas se completam. A realidade histórica é matizada como realidade aberta, construída pelo ser humano. A pessoa confere a realidade histórica essa abertura existencial. “O objeto da filosofia deve ser primeiramente a realidade intramundana, a qual não significa necessariamente que Deus há de ser tão somente objeto de fé”. (Elacuría, 1992, p. 86). Deus para ele está presente na realidade histórica de seu povo. O conceito de razão teórica e prática na filosofia de Kant, segundo Ellacuría, ilustra o dilema da presença de Deus na história do ser humano, não concebido através da razão teórica a qual é tomada como especulativa, mas Deus age por meio da razão prática. Entretanto, uma razão não exclui a outra, mas a razão prática evidencia a maneira operada por Deus de estar presente no comportamento do ser humano, tendo nos atos morais Deus como o Sumo Bem.
Para finalizar, Ellacuría ao problematizar a questão do objeto da filosofia faz lembrar primeiramente que não existem duas histórias: um dos países desenvolvidos e outra dos países do terceiro mundo. Porém, há uma única história, que ele entende como realidade aberta e dinâmica perpassada pelas experiências sociais do ser humano.

Conclusão
Evidenciou-se num primeiro momento que Ignácio Ellacuría recorre a Hegel, Marx e Xavier Zubiri para mostrar os principais traços filosóficos desses pensadores tendo como intenção explicitar como discorreram em seus sistemas filosóficos a busca pelo objeto da filosofia. Ellacuría elabora o seu próprio itinerário acerca do objeto da filosofia. A realidade é tomada como algo que se faz mediante a dinamicidade. Com isso, o teólogo e filósofo espanhol apresenta como objeto da filosofia a “realidade histórica”. A realidade histórica é tomada como realidade aberta. E essa abertura somente se dá devido ao fato da pessoa ser um ente em processo de transformação e ao mesmo tempo dado à experiência da liberdade. A abertura na realidade histórica é tomada por Ellacuría como experiência “intramundana” e, Deus caminha com a pessoa nessa vivência “intramundana”. Os três escritos de Ellacuría analisados permitem dizer que sua proposta filosófica-teológica contribuiu para a fundamentação da formação da consciência cristã defendida pela Teologia da Libertação, no contexto da América Latina. Assim, essa frase de Paulo Freire resume o propósito do autor espanhol e, comumente, da Teologia da Libertação: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”.

Bibliografia
ELLACURÍA, Ignacio. Filosofia de la realidade historica. Madrid: UCA Editores, 1990.
ELLACURÍA, Ignacio. Funcion Liberadora de la Filosofia. El Salvador: ECA – Estúdios Centroamericanos de la Universidad José Simeón Cañas, 1985.
ELLACURÍA, Ignacio. Para una Filosofia desde América Latina. Bogotá: Pontifícia Universidad Javeriana, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

sábado, 20 de março de 2010

Missão Integral

Carlos Cunha, teólogo batista.

Missão Integral foi um movimento de caráter evangelical(1) que eclodiu na década de 70 liderado principalmente por teólogos e missiólogos latino-americanos. Reagindo à deformação do evangelho pelo condicionamento ideológico capitalista e a sua restrição a uma esfera “espiritual” sem compromisso com a situação do mundo, que acometia o fundamentalismo evangélico tradicional, esses pensadores propuseram um compromisso com o evangelho em todo o seu alcance, e com o homem como um ser integral. Seu lema era: “o evangelho todo, para o homem todo, pelo mundo todo”. Entre as figuras mais importantes do movimento, estavam René Padilla, Samuel Escobar, Pedro Arana, Valdir Steuernagel e muitos outros.
O evento crítico para a divulgação dessa nova perspectiva foi o Congresso Lausanne I, na Suíça, realizado em julho de 1974. Durante esse evento, que reuniu 2473 participantes e 1000 observadores de 150 países e 135 denominações, um grande debate ocorreu em torno da extensão da missão. Havia uma pressão no sentido de se identificar a missão apenas com a evangelização, de se ignorar qualquer consideração a respeito do papel que o contexto cultural e os condicionamentos ideológicos tinham sobre a teologia e a prática missionária, e de dar prioridades às vozes do primeiro mundo nas conclusões. Mas com o apoio de um dos líderes do encontro, o Dr. John Stott, os latino-americanos puderam expressar suas idéias.
A reflexão teológica da Missão Integral buscou uma compreensão adequada dos problemas da América Latina esforçando-se por promover uma reflexão teológica autóctone, contextualizada. Grande atenção foi dada à questão da pobreza e da justiça social, à questão da estratégia missionária, e à educação teológica. Nesse processo é possível observar um diálogo com as ciências humanas, como instrumento de análise para melhor compreensão da situação latino-americana, bem como com os teólogos da libertação. Observa-se também uma tendência de apoiar o socialismo contra o capitalismo com a sua teoria desenvolvimentista; de um modo geral, no entanto, há uma postura bastante crítica visando a preservação do evangelho bíblico. Como o nome indica, o movimento da Missão Integral influenciou principalmente a hermenêutica bíblica e a reflexão missiológica, havendo uma reflexão menor a respeito de outras áreas.
Com o tema “Para que o Mundo ouça a Sua (Deus) voz”, o movimento da Missão Integral foi responsável por impactar a maneira de ver e fazer missão das igrejas reformadas no Brasil.
O primeiro impacto foi produzido pela ruptura com o mito da polarização teológica entre ação social e evangelização. Para muitos grupos reformados, ação social, ou melhor, serviço social, era visto como instrumento para evangelização. Satisfaziam-se, socialmente falando, com serviços sociais assistencialistas e muitas vezes usados como “iscas” para ações proselitistas.
Estes grupos perceberam então que não se pode desvincular evangelização da ação social. Estas são duas realidades inseparáveis que se sustentam e se fortalecem mutuamente numa espiral ascendente de preocupação crescente. Evangelização e responsabilidade social são partes integrantes da missio Dei(2), portanto inseparáveis e indispensáveis na missão integral da Igreja de Jesus no mundo e para o mundo.
O segundo impacto foi sentido quando se desmistificou o mito do dualismo humano. O evangelismo protestante de missão oriundo dos Estados Unidos e da Europa limitou o conceito de salvação, achando que Cristo veio salvar apenas a alma do ser humano. De inspiração platônica, este conceito de salvação é deveras espiritualista.
O ser humano é um todo. Partindo da perspectiva bíblica, o ser humano poderia ser definido como sendo uma comunidade integrada de corpo e alma. Entretanto, a ausência de compreensão do indivíduo como ser integral, pela própria Igreja, tem levado a mesma a desvalorizar não somente o ser humano na sociedade, como também o próprio evangelho para o qual ele foi chamado a proclamar no mundo. Só existe fidelidade na evangelização quando existe fidelidade na missão integral da Igreja.
O movimento da Missão Integral não só derrubou os mitos da polarização teológica entre ação social e evangelização e dualismo humano como também legou as igrejas reformadas no Brasil a capacidade de pensar e fazer missão a partir de situações sociais concretas. A articulação entre a hermenêutica do texto bíblico e a hermenêutica da vida a partir de igrejas autóctones passou a ser o lugar teológico ideal.
Notas:
(1) Evangelical” não no sentido amplo do termo de evangélico, mas para identificar um grupo de cristãos comprometidos com o movimento da Missão Integral e a sua influência na maneira de crer e viver a fé cristã. Samuel Escobar, líder evangelical latino-americano, faz uma classificação ponderada sobre o perfil do evangelical: (1) herança teológica da Reforma – solas; (2) paixão evangelística oriunda dos avivamentos do século XVIII; (3) piedade associada a uma intensa vocação missionária herdada do pietismo; (4) postura anabatista da separação entre Igreja e Estado; (5) ética puritana e (6) dimensão social do evangelho aliada a diaconia e postura profética perante a sociedade.

(2) Conceito importante para a Missão Integral. Originalmente pensada por Karl Barth a missio Dei foi popularizado por Georg Vicedom no livro A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão, publicado pela editora Sinodal em 1996. Segundo Vicedom, missio Dei significa que a missão é obra de Deus. Ele é o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo da missão. A Igreja é instrumento de Deus, isto é, se ela se deixar usar por ele. Não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente, sobretudo no livro dos Atos dos Apóstolos. Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. O derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o enviado, sem que com essa trindade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas.

sábado, 13 de março de 2010

O reformador Calvino

Trechos da Entrevista à IHU On-Line (revista eletrônica do Instituto Humanitas da UNISINOS) de Bernard Cottret, professor universitário, autor de uma famosa “Biografia de Calvino” .

O que faz a diferença do empreendimento de Calvino e de Lutero de “purificar” o cristianismo?
Bernard Cottret - Lutero, em sua concepção do sacramento, permanece ligado à substância. Nele, fala-se de consubstanciação a propósito da Santa Ceia, e o pão e o vinho coexistem com o corpo e o sangue do Salvador. Para Calvino, isso não tem sentido; ele muda radicalmente de perspectiva por sua teoria do signo. A purificação calvinista do cristianismo consiste em extirpar impiedosamente a idolatria, incluindo a liturgia. Praticamente não há arte sacra calvinista – quando há evidentemente uma arte sacra luterana, anglicana .... católica.

Quais são os pontos de proximidade e de ruptura que o senhor destacaria entre estes dois reformadores?
Bernard Cottret - Lutero e Calvino têm, ao mesmo tempo, teologias próximas por sua afirmação da justificação pela fé ou sua recusa do sacrifício da missa, mas também dessemelhanças. É, pois, falso reduzir, como se faz com frequência, o calvinismo somente à predestinação.

Quais são as influências do “Calvino jurista” no “Calvino teólogo”? A austeridade de seu pensamento seria explicada por esta diferença?
Bernard Cottret - Calvino é jurista onde Lutero e os outros receberam uma formação clássica de teólogos católicos. Isso induz diversas características notáveis que eu destaquei em minha biografia:
1) Calvino permanece profundamente laico;
2) Ele jamais recebeu consagração pastoral, enquanto Lutero e os outros são antigos padres;
3) De maneira igualmente essencial, ele recusa dissociar a Lei e a Graça, a Torah e o Evangelho. De onde provém, sem dúvida, o filo-semitismo notável de diversos reformadores, no qual Lutero se mostra funcionalmente antijudaico.

Em que medida o calvinismo é uma reação ao protestantismo e ao catolicismo?
Bernard Cottret - O calvinismo é uma construção dogmática que eu distinguiria da fé viva de Calvino. Muitos protestantes calvinistas preferem dizerem-se reformados para não incorrer na censura de idolatria. Um bom calvinista não deveria dizer-se “calvinista”, e, em sua origem, o calvinismo é uma invenção de luteranos da segunda ou terceira geração, hostis à teologia de Calvino, em particular sobre as questões eucarísticas. Calvino em todo o caso não queria ser calvinista...

O calvinismo foi uma segunda fase do protestantismo?
Bernard Cottret - Embora ele tenha aparecido historicamente após Lutero, Calvino promoveu uma teologia profundamente original, e é difícil falar de uma segunda fase ou de um aprofundamento. É fundamentalmente outra tradição cultural, ligada ao humanismo francês – pista que eu explorei em minha biografia.

Qual é a atualidade de Calvino 500 anos após seu nascimento?
Bernard Cottret - A tarefa do historiador parece-me ser a de sempre: descartar o anacronismo, e eu desconfio de expressões como “a atualidade de Calvino”. No fundo, e para retomar Calvino sobre este ponto, sua atualidade se dá no aspecto do olhar ou da fé. Não existe atualidade em si de Calvino, de Marx ou de Jesus, mas continua a permanente exigência de uma renovação interior. Ou, para empregar outra palavra, de uma reforma sempre ativa.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Bibliografia Complementar

Aqui você vai encontrar referências a outros livros e artigos em torno ao tema de Iniciação à Teologia Cristã, que não estão em "A casa da Teologia" . Para facilitar a localização, as referências bibliográficas complementares estão organizadas a partir dos capítulos do nosso livro. Bom trabalho!

(1) Na Varanda
LIBANIO, João Batista. Introdução à Vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2006, 3d, pp. 37-51 (cap.2: aprender a pensar); pp.239-256 (cap.13: leitura).
BRIGHENTI, Agenor. A Igreja perplexa. A novas perguntas, novas respostas. São Paulo: Paulinas-SOTER, 2004, pp.93-115 (A emergência de grandes desafios)

(Em processo de construção)

Teologia, um saber amoroso

“Se destruíres teus instrumentos de opressão, e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa; se acolheres de coração aberto o indigente e prestares todo socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia. O Senhor te conduzirá sempre e saciará tua sede na aridez da vida, e renovará o vigor do teu corpo; serás como um jardim bem irrigado, como uma fonte de águas que jamais secarão” (Is 58,9-12).

A teologia se propõe a ser um discurso articulado sobre Deus e a partir de Deus, que é a fonte de toda Vida, a raiz e o princípio de todo amor, o próprio Amor (1 Jo 4,16). Isto confere ao saber teológico um grande diferencial, que toca sua estrutura interna. Fazer teologia é pensar e se expressar a partir do Amor, tal como se revelou na história da relação de Deus com seu Povo. Por isso, a teologia visa também aumentar a capacidade humana de amar.

A teologia não é um saber neutro, no qual o sujeito cognoscente se distancia com frieza matemática do objeto que pretende conhecer. Aliás, este próprio conceito de “neutralidade científica” está em crise, desde que um grupo significativo de pensadores afirmou que o olhar do observador influencia o resultado da observação, a começar do campo da microfísica e das estruturas moleculares. É parte intrínseca da teologia sua finalidade de levar o(a) teólogo(a) e a comunidade eclesial a conhecer o Deus-Amor. Ora, conhecer o Amor significa deixar-se amar, deixar-se tocar, aceitar ser iluminado por uma luz que não vem de si próprio (Sl 36,9). E ao experimentar o amor de Deus, amá-lo mais e, no Seu amor, amar a todas as suas criaturas (cf. 1 Jo 4,8). Se levarmos às últimas conseqüências a afirmação joanina de quem “quem ama conhece a Deus”, consideraremos que, no mínimo, o amor é a fé em potencial, ainda não plenamente manifestada.

Isso significa ainda que a teologia é simultaneamente uma reflexão sobre o amor (ágape-logia), que deve levar o ser humano a ser mais apaixonado por Deus e seu projeto salvífico em relação à humanidade e ao cosmos. A linguagem mais adequada para se aproximar deste mistério fontal, comporta algo específico. A teologia cristã, desde os princípios, vive a tensão entre poder falar de Deus, pois Ele mesmo se revelou (dimensão katafática), e reconhecer que todo discurso sobre o Senhor não consegue abranger a grandeza e a profundidade do Divino (dimensão apofática).
Porque é um falar sobre o Amor, a partir do Amor e visando fazer o ser humano mais amoroso, a teologia não pode lidar somente com conceitos. Toda a história da teologia no ocidente, especialmente a partir da escolástica, levou a uma grande conquista: refletir de Deus com conceitos abalizados. É algo irrenunciável para realizar a tarefa de “dar razões para nossa esperança”. Mas a teologia necessita também recorrer à história de Deus nas vidas das pessoas (caráter testemunhal) e lançar mão das analogias e da linguagem poética. Só assim, numa pluralidade de linguagens e abordagens, deixar-se-á tocar pelo mistério amoroso de Deus.

Não se trata novamente de compartimentar a teologia, reservando somente para a espiritualidade a dimensão amorosa da teologia; para a moral seu aspecto ético; e para as outras disciplinas seu caráter racional. Toda e qualquer disciplina teológica precisa estar embuída de espiritualidade, pois é um discurso que leva a conhecer e deixar-se conhecer por Deus, viver em intimidade com o Senhor, amá-lo e servi-lo. Comporta também uma dimensão ética, pois o serviço a Deus e ao seu Reino se visibiliza nas relações interpessoais e nas estruturas culturais, sócio-políticas e econômicas.
Quando se afirma que a teologia é um discurso amoroso sobre Deus, leva-se em conta que o afeto é componente essencial desta forma específica do saber. No entanto, isso não significa fideísmo, ou um discurso religioso ingênuo e adocicado pelo pietismo. A teologia não pode abandonar a coerência dos conceitos, o necessário uso da razão, de forma crítica e construtiva, e a articulação com os outros saberes humanos. Enquanto exercício da razão iluminada pela fé, é o amor lúcido, o amor pensante. Fazer teologia exige tanto o distanciamento crítico da razão quanto o envolvimento amoroso da fé. Desta tensão salutar emerge o diferencial da teologia.

É bom sinal quando um instituto de teologia, ao fazer sua avaliação anual com os alunos e professores, se pergunta: em que sentido a aprendizagem da teologia nos ajudou a conhecer, amar e servir melhor a Deus e a seu Povo. Em que aspectos auxiliou a peregrinação espiritual dos professores e dos alunos? Uma das tentações mais fortes de qualquer forma de saber, inclusive da teologia, é levar à auto-suficiência, nutrindo o orgulho e a vaidade. A lógica sutil consiste em: “porque sei mais do que os outros, sou melhor do que eles”. Assim, o conhecimento racional ocupa o lugar do conhecimento intuitivo e teologal (conhecer a Deus, ao viver a fé, a esperança e a caridade) e parece dispensá-lo. Na realidade da comunidade eclesial, os dois se completam. O (a) teólogo(a) é intérprete não somente dos dados teológicos da Escritura, na corrente da Tradição viva de sua Igreja, mas também das manifestações atuais da fé, na sua beleza e ambigüidade.
Afonso Murad

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Teologia da Libertação: autocrítica e perspectivas

Este artigo de J.B. Libânio, escrito originalmente para um livro e disponibilizado no seu site, apresenta de forma sintética e profunda a autocrítica da Teologia da Libertação e algumas perspectivas para a futuro.
A TdL diante de tantas críticas, da crescente resistência do magistério eclesiástico, do fracasso dos movimentos alimentados por ela (Revolução Sandinista, lutas populares), da queda do Socialismo real, da cultura pós-moderna com o surto religioso e da extrema subjetividade atual, do novo paradigma científico emergente empreendeu sua autocrítica. Revendo o seu discurso, reconhece-lhe certo pessimismo e negativismo sobre o mundo presente e sobre o ser humano, lido sob a ótica da opressão. Discurso monocórdico e positivista que pensa dar conta cabal da realidade, atropelando-lhe a complexidade, hoje amplamente desvendada pelas ciências sociais, pelas novas biociências, pelas ciências cognitivas e do comportamento humano (etologia), pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Ao mesmo tempo, era uma teologia idealista, virtual, que imaginava ser realidade os seus desejos como a Igreja dos pobres, o sujeito histórico popular, o pendor natural e ético do ser humano para a solidariedade.

Uma linguagem dualista a marcou, visualizando um grande inimigo – o capitalismo - a ser combatido à custa de sacrifícios e de um compromisso, que descuidaram a dimensão lúdica e prazerosa da vida. Isto lhe tirou o encanto e prazer. Ela necessita tornar-se uma teologia humanamente saudável. A TdL inicial tinha grandes vazios: “a corporeidade, o prazer, o “saber viver”, o “estar bem com a vida”, o direito de consumir bens e serviços variados e de qualidade, a beleza, a imersão em imaginários esperançadores, a autoestima, o incentivo a aspirações e à iniciativa, o embalo da paixão, etc. “ (Assmann, 2000: 126). A revisão tem consistido mais na ampliação de seus horizontes do que no refazimento de seu método ou princípios fundamentais por estar consciente de que marcou significativamente o universo teológico, a vida da Igreja e da Sociedade para além da AL como primeira teologia original desde a periferia. Sabe-se atual enquanto houver pobreza e injustiça social e cristãos que queiram lutar contra elas a partir de sua fé. Foi presença questionadora para militantes e intelectuais que rejeitavam a fé cristã por causa de sua vinculação histórica com posições ideologicamente conservadoras.

Irrenunciáveis são seu método, sua opção fundante pela libertação dos pobres, a articulação fé e vida, Revelação e realidade social, teoria e práxis, sua vinculação com as CEBs. Percebeu que tem de ampliar a gama dos oprimidos para além da pobreza material incluindo a etnia, o gênero, a ecologia, a religião. Para tal, exige-se uma reformulação das mediações socioanalíticas, ao inserir nelas a antropologia, a etnologia, a psicologia nas suas diversas formas. Reconhece sua carência no campo da pneumatologia, tanto na sua articulação com a pessoa histórica de Jesus, quanto com a eclesiologia. A dimensão da subjetividade e da espiritualidade fora negligenciada. Por distanciar-se do culturalismo e por prender-se demasiado às estruturas socioeconômicas esposara uma visão estreita da cultura. Percebe a necessidade de desenvolver uma confrontação com a cultura, a ética e a religião. Descobre a possibilidade de alianças com movimentos sociais alternativos, regionais e mundiais, em torno desses três campos, valorizando uma presença na sociedade civil em vez de fechar-se exclusivamente numa luta no espaço da sociedade política, do Estado.

Uma visão preconceituosa da religião popular foi já desde bom tempo confessada e corrigida. Ela não cultivou uma teologia do cotidiano dos pobres no campo religioso ou secular, onde há muito espaço para sua humanização e pequenas libertações. O pobre é também realidade de inspiração e esperança pela sua fé, valores humanos e não só de indignação contra a situação a que foi submetido. Desafia a TdL a nova situação religiosa criada pelos grupos evangélicos neopentecostais. Os pobres mais pobres não freqüentam as CEBs, mas essas igrejas. Elas oferecem respostas às necessidades imediatas do povo pobre. Prometem-lhe para logo a cura divina de seus males físicos e psíquicos, a libertação do demônio (exorcismo), a prosperidade material, o alívio, o consolo e bem-estar espiritual, a dignidade humana pela recuperação dos vícios, experiências de transe e dons carismáticos sob a liderança autoritária do pastor. Seduzem o povo. Falam a um inconsciente povoado de símbolos religiosos tradicionais e afroameríndios, ressemantizando-os. Fazem o oposto das CEBs que o conscientizavam para a luta num horizonte utópico. Dão uma importância ao corpo de cada pessoa, sua saúde, o que a TdL não fez. Alienam as pessoas da consciência política e social para colocar unicamente na fé a solução de seus problemas a curto prazo. O dízimo-sacrifício representa a maneira “compensatória” de obter-se a bênção de Deus. O discurso libertário da TdL necessita ser repensado à luz desse fato de proporções gigantescas, entendendo, recuperando e interpretando na perspectiva libertadora os símbolos religiosos do povo.

Há uma pós-modernidade popular que interpela a TdL. O povo desconfia das “grandes narrativas” libertárias sociais que nada de bem lhe trouxeram. Percebe que os progressos da razão não são para ele. Experimenta antes o reverso da história, daí sua abertura a discursos espiritualistas com soluções imediatas, onde se misturam elementos da pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade. A TdL necessita ter a sensibilidade de perceber no povo essa imbricação de horizontes culturais e falar-lhe em termos de fé. A sociedade e a cultura oferecem enorme pluralidade de práticas sociais possíveis, de valores, de perspectivas. No horizonte de suas opções fundamentais é chamada a ajudar o povo a discernir, renunciando um monolitismo de projeto.

Desafia-lhe saber situar-se entre a utopia e a realidade, sem cair no engodo da capitulação diante do neoliberalismo globalizado nem do utopismo idealista. Em termos eclesiais significa navegar contra as correntezas espiritualistas alienantes, o conservadorismo intraeclesial, um catolicismo de marketing mediático. Ontem desafiava a TdL pensar a fé numa situação de pobreza, mantida pela violência dos regimes militares; hoje a pobreza é pior, mas mantida pela ilusão das promessas neoliberais e das igrejas neopentecostais.
Texto: J.B. Libânio
Pintura: Frei Anderson msc